DIA INTERNACIONAL DA MULHER
Quem por aquela rua passava, sempre olhava para o frontispício de uma casa humilde, com duas janelas e uma porta separando-as e um relógio enorme marcando as horas. Casa humilde, mas cheia de vida e de saudades, ali morava um relojoeiro e sua família. Cheia de vida, pois que ali habitavam eram comunicativos e risonhos, se bem que a saudades campeava à solta. Saudades, da mãe que se fora para outra vida, vítima de tuberculose. Jovem ainda, no esplendor dos 36 anos. De fato era muito bonita e jovial e amava o marido com tanto frenesi, que nasceram cinco rebentos deste amor. Três eram moçoilas e dois por sua vez moçoilos. Órfãos de mãe e com um pai viúvo, muito moço ainda, 40 anos quanto muito. Como cuidar das filhas e dos filhos? As jovens belas e com os hormônios à flor da pele, empolgavam-se pelas histórias dos heróis de guerra. Por sinal já finda. Corria o ano de 1944. Os anos eram de romantismo. As moças de família mantinham o seu diário e livro de recordações, como sendo um tesouro maior. A primeira flor, o primeiro bilhete, até o papel do primeiro bombom, Sonho de Valsa, era guardado como recordação. Quem sabe do primeiro namorado, do amor primeiro. Quanto aos rapagões, a sua vida era outra. Empinar papagaios, caçar rolinhas com arapucas e pescar nos rios ligeiros de água cristalina.
Mas a vida continuava. O velho pai, não tão velho, vivia às preocupações que todo o pai viúvo vive. Como administrar a casa? Como lidar com as regras das meninas e as masturbações dos meninos? E então a filha mais velha resolve se enamorar por um tal de Pedro. Fugiram, como se dizia antigamente. O pai ficou magoado, triste, sentiu-se traído. Logo a filha mais velha. Não demorou muito a filha do meio, resolve morar na capital. Empregou-se como acompanhante de uma senhora, cuja família era dona de um hospital. Por sinal o maior da cidade. Só gente doente e rica, era hospitalizada ali. Um dia resolveu perguntar à patroa, se era bom trabalhar no hospital. Foi emprega na mesma semana. Tomou gosto pela coisa. Restou em casa, à filha mais nova e os dois imberbes, com voz desafinada, qual galo engasgado quando canta na madrugada.
Fugiu? Não acredito. A mais bonita das filhas. A mas atenciosa e querida. Linda de doer. Simpática e comunicativa. Engabelou-se por um certo rapaz, que tinha lá o seu charme. Grávida. Mas logo nos primeiros meses? Ou já se encontrava grávida quando fugiu de casa, para não envergonhar o velho pai? A cidade para onde fora morar com o amor da sua vida, Paranaguá. Aborto involuntário. Despregou a placenta. Tristeza. O velho pai, veio em seu socorro. Minguados cruzeiros. Mas ajudava. Quanto ao marido, a história se complica. Tinha uma outra mulher. Já era casado. Mas apaixonou-se perdidamente por aquela criatura, que não teve coragem de contar que era casado, com medo de perder aquele amor. Grávida novamente. Parto em casa. Menino. Alegria que dura pouco. Não havia modo e maneira de viverem juntos. Bebia e era dado as farras e mulheres. Separação. Para onde iria com o filho no colo? A irmã mais velha, a estas alturas era administradora do hospital. Competente e séria. Arruma uma vaga de auxiliar de enfermagem em um outro hospital maternidade. Tinha direito a criar o filho, junto ao local de trabalho. Ficaram por ali uns dois anos. Precisava dar um rumo na vida. Mais dinheiro e um filho para criar. Aprendera os ofícios de enfermagem. Passou rapidamente para auxiliar de enfermagem na sala de cirurgia. Cesarianas eram raras, mas existiam. Partos? Já assistira e auxiliara mais de 500. Como era um hospital maternidade, não via futuro na coisa. A irmã administradora do outro hospital, a recomenda para a direção. Dito e feito. Empregada e com um filho a tira-colo e ganhando mais. Não demorou seis meses e já era enfermeira chefe do centro cirúrgico.
Agora mais bonita ainda. Meio mignon, cabelos lindos. Olhar firme e tentador. E eis que o destino lhe prega uma peça. Apaixona-se com um paciente. Abandona a vida segura que até então tinha e resolve apostar no relacionamento que lhe traria tantos desgostos que daria até para escrever uma novela. Embarca em uma aventura, por assim dizer. Os anos eram de 1950. O norte do estado do Paraná começava a despertar para a colonização. E lá se foi ela, com o novo amor e o filho. Desbravar uma gleba de 10.000 hectares. Vida de loucura e valentia. A casa até que era confortável, dentro do que se permitia à época. Como era enfermeira, já ganhara a simpatia da peonada, das famílias da fazenda e dos moradores do pequeno Patrimônio dos Apertados, ou do 64. Pois distavam 64 quilômetros de Paranavaí. Hoje conhecida como Guairaçá. Madrugada fria, céu estrelado. Palmas, gritos. Aquela voz era de súplica. Acorda e vai ver o que era. Oh dona Dindinha, dá para a senhora, ir aparar a minha mulher? Acompanhada do filho e do agoniado pai de primeira viagem, a maleta e lá se vão madrugada afora. Não tem dilatação. Vamos esperar um pouco. Um soro, um medicamento. Contrações e... nasceu. Filho homem. Bendita dona Dindinha. O dia clareava. A jovem mãe, amamentava o filho primeiro, de muitos outros que viriam ainda. De volta para a fazenda. Não sem antes, tomar leite com farinha de milho amarelo e adoçado com rapadura. A senhora não arrepara não. É que nóis num tem dinheiro pra pagar à senhora. Mas nóis caça uma maneira de pagá. E assim era a vida. Semanas passadas e aparece o jovem pai. Num esqueci não. Marianinha mandou trazê duas dúzias de ovo de pata e três galinhas. Mas progunta se a senhora num tem umas roupinhas pra criancinha. Tinha. Mandou as roupinhas e devolveu as três galinhas. Manda ela criar bem estas galinhas, para elas botarem ovos e chocarem. Assim vocês terão comida.
Um dia, o então marido, dado ao vício da embriaguez, bateu nela de facão. Deu um tiro que acertou um quadro com uma fotografia, onde ela estava tão linda. Quando bebia, ficava violento. Era insuportável. A vida continuou. Perderam a gleba. Mudaram-se para outra cidade. A estas alturas já nascera o segundo filho. O primeiro já tinha seus oito anos.
O filho mais velho vai morar com a tia em São Paulo. Ano de 1952. Já tinha algumas noções de leitura e escrita. Aprendera com a Dona Rosinha, a escrever em uma lousa de pedra preta e com giz. Todos os alunos da escola rural usavam lousa de pedra preta. Não havia caderno e tão pouco lápis. Em São Paulo, morando com a tia e a madrinha, foi matriculado em um Grupo Escolar, chamado Monteiro Lobato. O ano 1954. Centenário de São Paulo.
A vida na nova cidade, não melhorou em nada. As bebidas, as surras, os tiros e por fim ficou viúva. Mataram o dito cujo, com dezessete facadas. Viúva com dois filhos. Mas sabia de antemão que o falecido era casado e tinha família. Não deu outra. A mulher com a qual fora casado, o já então falecido, sentiu-se no direito de se apossar de todos os bens. Que não eram poucos. Uma luta sem quartel. Venceu. Mas como administrar os bens? Posto de gasolina, oficina mecânica, autopeças, armazém de secos e molhados e uma pensão? Afora os aluguéis de umas casas que tinha em Campo Mourão? Trabalhava sempre. Sempre trabalhara. Sentia-se digamos, aliviada. Não apanhava mais o marido. Não se escondia na casa dos vizinhos, com medo de ser morta. Todos a conheciam, por seu espírito despojado. Ajudava o médico local em cirurgias mais complicadas, em um modesto hospital de Engenheiro Beltrão.
A sua fama de enfermeira, corre longe. Um dia voltando de Curitiba para Campo Mourão, em um avião da Real Aerovias, conheceu um jovem médico.
Recém formado morava em Peabiru. Paixão. Amor. Respeito. Mais um casamento. Agora, exerce o papel na vida real. A enfermeira se casa com o médico. Mais dois filhos. Já são quatro. A vida mudara radicalmente. A felicidade até existia. Existia. Morre de enfarte o terceiro marido. Viúva, com quatro filhos. O mais velho já universitário. Forma-se e vai tratar da vida. Os outros três? Sempre a tira-colo. Vem morar na capital. Curitiba. E o destino lhe prega mais uma peça. Encontra por acaso um namoradinho de juventude. Ele não se casara ainda. Ela três vezes. E então se casaram. Quarto casamento. Filhos presentes. O mais velho já casado e com a esposa grávida, são padrinhos de casamento da mãe e da sogra. Viveram uns 15 anos. Um dia ele sentiu uma forte dor abdominal. Vamos para o hospital. Aneurisma, na veia aorta. Cirurgia e falecimento. Viúva pela quarta vez. Pois a esta altura da história, o primeiro marido falecera.
Não desanimou. Continuou sua vida. Recuperação lenta e gradual. Freqüenta alguns bailes da melhor idade. E assim vai vivendo. Mas nos últimos anos, dava para notar que perdera o viço. Não tinha mais aquela espontaneidade e tão pouco o riso fácil e aberto. Mas continuava linda. Sempre perfumada, cabelo muito bem penteado. Unhas bem feita. Vestia-se com classe. Um dia sentada com todos os filhos, noras, netos e netas, fez um balanço da vida. Construíra uma família diferente. Farinha de vários sacos, como costumava dizer. Todos encaminhados na vida. Um Médico Veterinário, o mais velho. Outro bancário, filho do segundo casamento. Um Médico e a menina Pedagoga, filhos do terceiro casamento. No quarto não tivera filhos. Sentia-se realizada. Não era a matriarca. Tão pouco dava palpites na vida dos filhos.
Uma noite como sempre acontecia. Tomou seu banho, pediu que a moça que com ela morava, lhe trouxesse o chá de camomila. Não o tomou. Morrera dormindo.
Foi uma vida, vivida de paixão, de amor, de fidelidade, de coragem, de doação, de seriedade, de crença em DEUS, de exemplo maior de mãe.
Nestas simples linhas, quero homenagear todas as mulheres. Lutadoras, verdadeiras heroínas, não faço distinção de classes e tão pouco de educação, credo e cor.
Quero homenageá-las , lhes contando a história de uma mulher que viveu todos os dias da sua vida, amando a vida e aos seus próximos, como se seus filhos o fossem.
À dona Dindinha, que criou e educou seus quatros filhos, que casou e viuvou quatros vezes, que sempre foi fiel a seus princípios.
Lastimo muito que a Dona Dindinha, tenha falecido e nos deixado.
Mas quero lhe agradecer de todo o coração por tudo, minha querida mãe, Dona Dindinha.
Parabéns pelo DIA INTERNACIONAL DA MULHER, à todas as mulheres, razão das nossas vidas e do nosso viver.
Seu filho, Romão.