Do princípio ao fim

No princípio percebeu que ser a mais jovem entre vinte e um irmãos exigia tática. Aprendeu, por si, a sobreviver. Lutadora, amorosa e muito bonita, cedo casou-se com o delegado da cidade. A união entrou para os registros folclóricos locais, versão tupiniquim do clássico A Bela e a Fera, a espontaneidade e a sisudez contrapostas.

Na capital, ela passava por filha do esposo: quinze anos de diferença de idade e bom humor reforçavam a confusão. Vieram as filhas, o marido alçou postos profissionais avançados e ela teve oportunidade de estudar. Durante o dia, irrequieta, conduzia a casa com pulso firme, retidão e muita ternura. À noite acompanhava o marido nas festas, solenidades públicas. Orquestrava uma família feliz.

As filhas cresceram, sobrou tempo. Inteligente e sempre bem informada, tirou a poeira do diploma, virou professora. Enfrentou as vicissitudes com graça – “não há solidão para quem cultiva boas amizades” – e poucas lágrimas, guardadas para as mortes da mãe e do marido. Descobriu-se no trabalho junto à pastoral franciscana.

As netas resgataram o seu lado menina. Se a filha reclamava do tratamento liberal e lúdico dado às netas, o oposto do que ela havia imposto as próprias filhas, justificava-se com franqueza : “Avó é alívio para as regras firmes dos pais. Já fiz a minha parte, é a sua vez.” Era a avó, o contraponto, a leveza, o alto astral. Muitas vezes desaparecia, atendendo a alguma solicitação de apoio. Cobrada a presença, ela explicava-se com simplicidade: “Quem recebe mais atenção não é o mais amado, mas o que mais precisa.” Leal, simples, dinâmica, dava aulas durante o dia, ensinava corte e costura na escola profissionalizante da Igreja à noite, freqüentava bingos, visitava amigos e irmãos. Mexia em tudo, até no tempo: “O dia tem tantas horas quanto quisermos que ele tenha”.

Subitamente quem se gabava de não ir a médicos há muito foi submetida a cirurgia de emergência. Corajosa, fazia rir quem a acompanhasse nas sessões de quimioterapia que se sucederam. Abandonou o trabalho diurno, mas recusou-se a abandonar a pastoral. O genro tentou persuadi-la : era hora de parar, cuidar mais de si, parecia até que ela estava de caso com o frei... Pura provocação, ela sabia: à rezação preferia a ação, o trabalho. Respondia no mesmo tom: “Quando morrer, lego tudo ao Frei Cláudio”.

Um dia, inesperadamente como de seu estilo, chegou ao fim. Frei Cláudio falou da própria mãe na missa de ressurreição. O frei tentou, em vão, esconder as lágrimas, quando as netas fizeram a homenagem póstuma. Ela teria vibrado.

Espero que São Francisco aprecie piadas e irreverência. Caso contrário, a Eternidade parecerá ao santo terrivelmente longa a partir de agora.

Maria Paula Alvim
Enviado por Maria Paula Alvim em 13/02/2008
Reeditado em 14/02/2008
Código do texto: T858308
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