"Zé Vovô"
- “Que que cê acha de mim sobre beleza?”
Era sempre com essa pergunta, carregada de ironia e um largo sorriso, que o Vô chegava todos os dias, fosse cedo pra almoçar, fosse à noite, já cansado pela peleja do dia. E assim, após deixar na cozinha a carne de porco, geralmente um lombo ou pernil, e a leiteira com o leite trazido pelo “Oli”, ele se esparramava no sofá pra esperar o almoço (terminar de) ficar pronto. Na cozinha, a “Di” chamava o “meu Zura”, ao que ele ia, todo faceiro e feliz. Todos os dias o mesmo batido...
Acredito que Pitangui nunca conheceu, assim como nunca voltará a conhecer, alguém que tivesse uma alma tão generosa, mansa e cheia de bondade, generosa de sentimentos, de humildade e simplicidade.
Quem não se recorda de suas piadas, seus incontáveis causos, com riquezas de detalhes e nomes e suas inconfundíveis risadas. Interessante é que, embora amasse profundamente a mãe, em seus causos sempre predominavam os causos com o pai, os conselhos do pai e a figura paterna sempre estava muito presente em suas lembranças mais saudosas. Falava do velho pai com tanto amor que transcendia aos ouvidos mais atentos.
Figura ímpar esse Vô!!
A passos lentos, subia e descia as ladeiras da cidade, olhos no chão e cabeça pensativa. O intuito era sempre o mesmo: ajudar o filho, o único e tão amado filho. Trazia para si todas as dores e preocupações, para que o filho fosse poupado de aborrecimentos. Não media esforços nem sacrifícios para isso. Ainda que em diversas situações seu esforço fosse em vão, por incontáveis vezes eu o vi escondendo situações e problemas do filho. Era amor demais.
Por feliz destino, esse único e tão amado filho, partiu desta vida tendo presente somente o pai zeloso. Que dor inimaginável desse pai!
Sofreu calado, chorou calado ...
Apenas repetia inúmeras vezes as últimas palavras do filho antes do fim... que dor inimaginável desse pai...
Martirizava-se com a possibilidade de não ter feito tudo que podia para seu filho. Martirizava-se com as lembranças dos últimos momentos... que dor inimaginável desse pai...
E o tempo passa...
E os dias passam, um a um, um a um...
Lá vem ele, subindo a rua e virando no Beco, chapéu na cabeça e na mão a bengala. Os passos cada vez mais lentos. Sobe ladeira, desce ladeira. Logo de manhã, o café com biscoito de queijo no Zezinho, mais tarde um pouco o almoço no restaurante da praça. Até que um dia, crash... lá está o vô no chão. Quebrou o osso da perna.
Agora, finalmente ele é nosso. Acompanhamos todo o processo de recuperação. Na cirurgia, o coração foi a 190 BPM, mas aguentou firme. Nunca me esquecerei de seu rosto tão feliz quando fui visitá-lo no CTI após a cirurgia. Parecia uma criança, cheio de vitalidade e felicidade.Nos desdobramos em cuidados. As roupas sujas e descuidadas viraram passado. A cama sempre limpa e perfumada. Refeições em horários certos. Achávamos mesmo que chegaria aos 100 anos com facilidade. Mas o tempo é implacável. Logo as forças diminuíram e quase não saía mais da cama. O apetite pela vida diminuiu e a vida foi se esvaindo. O olhar azul e lacrimoso, cheio de vitalidade foi perdendo a luz...
Os “causos” já não lhe vinham à boca... que tristeza!
Num sopro de forças, vindo do fundo da alma, balbuciou a benção: Deus abençoe meus netos!
Não se passaram muitos dias, até que numa noite de março, deu seus últimos suspiros e partiu!!
Que dor inimaginável!
Obs.
- Texto de Rosana Mello Franco, nora de José Rodrigues Santiago Filho, o “Zé Vovô”.
- Sobre "Zé Vovô", meu tio materno, escrevi o texto contido nesse link:
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/8055748