"10"
10...
Nesta semana, assistindo ao jogo da seleção, não pude deixar de pensar sobre a penosa situação a que chegou o que já foi o maior orgulho nacional. Saudosismo? pode ser, mas como não ter saudade de outros tempos ao ver o amontoado de mediocridades a que se dá hoje o nome de selação brasileira de futebol. Lembranças de muitos times iluminados que vestiram a mesma cor que hoje os jogadores ostentam sem nenhum brilho. A geração atual de jogadores, se tivesse nascido 20 ou 30 anos antes, teria que procurar outra profissão.
Para se ter uma ideia de como futebol era coisa para artistas e assistir a uma partida era um privilégio, se comparado aos pobres espetáculos atuais, descreverei um período da minha infância:
Quanto tinha os meus 10, 11 anos, íamos meu irmão Larci e eu todo domingo de manhã ao campo do Vila Teixeira. Eu esperava toda a semana a chegada daquele momento. O ambiente era simples e rústico, pois sentávamos no barranco (isso mesmo : arquibancada em campo de varzea? nem pensar) e alí ficávamos algumas horas: o Larci pouco interessado no que se passava no campo, muito mais atento ao radinho de pílha e às campeãs da semana e sempre disposto a uma boa conversa com todos os tipos de pessoas que iam ver o Vila jogar. Eu não, meu interesse era o que ia se passar no campo.
Eu me sentia no melhor teatro do mundo, sentado naquele espaço de grama que se tornou cativo, pois chegávamos muito cedo para garantir um lugar que permitiria ver os artistas de muito perto, quase tocá-los e saber que ouviam quando os incentivávamos chamando pelo nome.
No campo de jogo não havia grama. Era terra batida, dura. Os que não fossem artistas corriam o risco de se machucar feio se tentassem jogar num campo como aquele.
A dimensão do campo devia ser oficial, pois a mim parecia enorme. Quando não havia jogo, eu costumava ir ao campo do Vila Teixeira e caminhava de um gol a outro, imaginando que um dia eu pudesse me tornar um daqueles artistas. No percurso de uma área à outra eu me imaginava com algumas camisas: a 5, talvez a 8, quem sabe a 2. Nunca a camisa 10, pois com essa eu não ousava nem sonhar. A 10 era mística: Pelé no Santos e na seleção; Ademir da Guia no Palmeiras e o Hélio no Vila Teixeira. Não, eu não me atrevia a tanto.
Tudo isso passava rápido pela minha cabeça de menino sonhador e eu chegava ao outro extremo do campo. Via-me na altura da marca do pênalti, media com o olhar a distância entre uma trave e outra, aquele chão duro como cimento, os cantos vivos das traves retangulares (não eram roliças como as de hoje) e chegava a sentir compaixão pelos goleiros adversários que um dia viriam a enfrentar alí o Vila Teixeira.
É difícil descrever sem correr o risco de parecer exagerado, mas quando o Vila jogava era como se aquele chão de terra se transformasse num imenso tapete macio. Não havia a menor dificuldade para aqueles artistas, com chuteiras de cravinhos (na época não eram chamadas de travas) de couro prensado. Caminhar num chão de terra batida usando sapatos com 6 pedaços de couro duro sob a sola já seria um feito. Pois aqueles artistas não só andavam, como corriam, jogavam futebol, e como...
Quando os times entravam em campo, eu sempre me preocupava pois os adversários de início me pareciam todos grandes, fortes e bem dispostos. Eu procurava entre eles os números que considerava mais perigosos: o 9, o 8, o 7, o 11 e, naturalmente o 10. Avaliava silenciosamente a forma como o no. 10 corria, chutava, se aquecia. Procurava, enfim, imaginar a extensão do perigo que corríamos com aquele craque (o 10 era sempre o craque de qualquer time).
Do outro lado, o Vila Teixeira com a camisa quadriculada em vermelho e preto. Era de um colorido especial e à medida que os jogadores corriam, a distância misturava as cores num efeito muito bonito que jamais ví repetir-se.
Mas, a minha preocupação logo desaparecia. Não havia adversário à altura daquele time. Decorridos poucos minutos, mesmo que a partida ainda estivesse empatada, o Vila passava a nítida certeza de que faria o que quizesse com o adversário e ganharia por qualquer diferença de gols que desejasse (pelo menos foi essa a impressão que retive na memória). Eu nunca ví o Vila Teixeira perder.
Eram todos artistas, que trabalhavam nas mais diferentes profissões durante a semana e aos domingos se reuniam para sua vocação maior e executavam “concertos” que deixariam com inveja muitos times profissionais de hoje. O time era quase o prolongamento de uma família: Gilberto, o zagueiro central clássico, dominador e soberano; Adilson, um coringa que se saia bem em muitas posições, Luis Grilo na meia direita com fôlego de sete gatos. Os craques da família e do time eram o Esquerdinha, goleador de chute poderoso e habilidade extrema e o Hélio, também conhecido como Mengálvio porque gostava de usar o calção bem abaixo do nível da cintura como o antigo jogador do Santos. O Hélio era o artista completo: nos dribles, nos lançamentos de longa distância, nas cobranças de falta. Era, enfim, um daqueles raros jogadores que podiam vestir a camisa 10 sem sentir nenhum peso.
Havia outros artistas: o Tiquinho na ponta direita era a versão local do Garrincha (quem viu o Floresta jogar na mesma época sabe que havia outras versões de craques famosos e que tinham a mesma habilidade, sem jamais terem sido profissionais: Friage, Didí, Daia, Airton, Fuzil...). Mas, voltando ao Vila Teixeira, quando o Tiquinho sofreu um sério acidente com sua lambreta, diminuiu um pouco a minha alegria de assistir futebol. Ele recuperou-se para a vida mas nunca mais pôde jogar. Numa das últimas eleições, encontrei-o como fiscal de partido e trocamos algumas palavras. Acho que o Tiquinho não tem ideia do que representou para os garotos da época e o vazio que deixou com sua ausência nas manhãs de domingo.
E outros mais: o Nelsinho na ponta esquerda, o Divor, que durante a semana, austero e formal de jaleco branco na farmácia da Mogiana, transformava-se no maestro do meio-campo do Vila aos domingos, o Dir, menos técnico que os demais, que como xerife na lateral-esquerda impunha respeito aos possíveis valentões adversários com entradas “na medalinha”. Afinal, isso também fazia parte pois um time como aquele era muito visado e alguem tinha que avisar logo cedo que, se fosse para engrossar, haveria troco. Havia também o Dola, o Lindóia, o Escoteiro, enfim, um cast completo de artistas que marcaram um período importante da minha infância.
Fui crescendo e também tive a minha própria chance de jogar naquele campo. Na primeira vez que nosso time da Vila Presidente Dutra (infantil Vila Teixeira, como nos denominávamos) jogou no campo do Vila Teixeira, minha emoção foi maior do que quando mais tarde estive nos gramados do Guaraní e da Ponte: era um sábado a tarde, mesmo dia do casamento do meu irmão Laerte e o jogo apresentou um episódio marcante; tive um desentendimento com o meu marcador, da mesma idade que eu mas bem mais alto e forte, com quem eu nunca tinha conversado antes mas já nutria um respeitoso ódio, como era natural entre membros de turmas rivais. Esse adversário violento, com quem corajosamente cheguei a trocar alguns empurrões naquela tarde, veio a se transformar no melhor amigo que tive na minha adolescência: o Pedro Almir Liza.
Pode até ser que boa parte do encanto e magia daqueles tempos estivesse mais nos olhos de um menino tímido e sonhador. É muito provável que as mesmas cenas vistas pelo homem prático e realista de hoje não ficassem tão marcadas, mas ficaram...
Eu tive a sorte de ter os meus ídolos de infância, no futebol, na música, no trabalho, entre os amigos, meus irmãos, meus país. Hoje, meus olhos mudaram e são muito mais críticos que os daquele menino, mas ainda retenho a ingênua esperança de que essa geração, que inclui meus dois filhos, saberá também sonhar e encontrar seus ídolos ao alcançe de um toque de mão, os seus camisa 10 craques indiscutíveis em quem possam se espelhar, no futebol e principalmente no jogo da vida.
Leonilson Rossi, 20 de Junho de 1991.
10...
Nesta semana, assistindo ao jogo da seleção, não pude deixar de pensar sobre a penosa situação a que chegou o que já foi o maior orgulho nacional. Saudosismo? pode ser, mas como não ter saudade de outros tempos ao ver o amontoado de mediocridades a que se dá hoje o nome de selação brasileira de futebol. Lembranças de muitos times iluminados que vestiram a mesma cor que hoje os jogadores ostentam sem nenhum brilho. A geração atual de jogadores, se tivesse nascido 20 ou 30 anos antes, teria que procurar outra profissão.
Para se ter uma ideia de como futebol era coisa para artistas e assistir a uma partida era um privilégio, se comparado aos pobres espetáculos atuais, descreverei um período da minha infância:
Quanto tinha os meus 10, 11 anos, íamos meu irmão Larci e eu todo domingo de manhã ao campo do Vila Teixeira. Eu esperava toda a semana a chegada daquele momento. O ambiente era simples e rústico, pois sentávamos no barranco (isso mesmo : arquibancada em campo de varzea? nem pensar) e alí ficávamos algumas horas: o Larci pouco interessado no que se passava no campo, muito mais atento ao radinho de pílha e às campeãs da semana e sempre disposto a uma boa conversa com todos os tipos de pessoas que iam ver o Vila jogar. Eu não, meu interesse era o que ia se passar no campo.
Eu me sentia no melhor teatro do mundo, sentado naquele espaço de grama que se tornou cativo, pois chegávamos muito cedo para garantir um lugar que permitiria ver os artistas de muito perto, quase tocá-los e saber que ouviam quando os incentivávamos chamando pelo nome.
No campo de jogo não havia grama. Era terra batida, dura. Os que não fossem artistas corriam o risco de se machucar feio se tentassem jogar num campo como aquele.
A dimensão do campo devia ser oficial, pois a mim parecia enorme. Quando não havia jogo, eu costumava ir ao campo do Vila Teixeira e caminhava de um gol a outro, imaginando que um dia eu pudesse me tornar um daqueles artistas. No percurso de uma área à outra eu me imaginava com algumas camisas: a 5, talvez a 8, quem sabe a 2. Nunca a camisa 10, pois com essa eu não ousava nem sonhar. A 10 era mística: Pelé no Santos e na seleção; Ademir da Guia no Palmeiras e o Hélio no Vila Teixeira. Não, eu não me atrevia a tanto.
Tudo isso passava rápido pela minha cabeça de menino sonhador e eu chegava ao outro extremo do campo. Via-me na altura da marca do pênalti, media com o olhar a distância entre uma trave e outra, aquele chão duro como cimento, os cantos vivos das traves retangulares (não eram roliças como as de hoje) e chegava a sentir compaixão pelos goleiros adversários que um dia viriam a enfrentar alí o Vila Teixeira.
É difícil descrever sem correr o risco de parecer exagerado, mas quando o Vila jogava era como se aquele chão de terra se transformasse num imenso tapete macio. Não havia a menor dificuldade para aqueles artistas, com chuteiras de cravinhos (na época não eram chamadas de travas) de couro prensado. Caminhar num chão de terra batida usando sapatos com 6 pedaços de couro duro sob a sola já seria um feito. Pois aqueles artistas não só andavam, como corriam, jogavam futebol, e como...
Quando os times entravam em campo, eu sempre me preocupava pois os adversários de início me pareciam todos grandes, fortes e bem dispostos. Eu procurava entre eles os números que considerava mais perigosos: o 9, o 8, o 7, o 11 e, naturalmente o 10. Avaliava silenciosamente a forma como o no. 10 corria, chutava, se aquecia. Procurava, enfim, imaginar a extensão do perigo que corríamos com aquele craque (o 10 era sempre o craque de qualquer time).
Do outro lado, o Vila Teixeira com a camisa quadriculada em vermelho e preto. Era de um colorido especial e à medida que os jogadores corriam, a distância misturava as cores num efeito muito bonito que jamais ví repetir-se.
Mas, a minha preocupação logo desaparecia. Não havia adversário à altura daquele time. Decorridos poucos minutos, mesmo que a partida ainda estivesse empatada, o Vila passava a nítida certeza de que faria o que quizesse com o adversário e ganharia por qualquer diferença de gols que desejasse (pelo menos foi essa a impressão que retive na memória). Eu nunca ví o Vila Teixeira perder.
Eram todos artistas, que trabalhavam nas mais diferentes profissões durante a semana e aos domingos se reuniam para sua vocação maior e executavam “concertos” que deixariam com inveja muitos times profissionais de hoje. O time era quase o prolongamento de uma família: Gilberto, o zagueiro central clássico, dominador e soberano; Adilson, um coringa que se saia bem em muitas posições, Luis Grilo na meia direita com fôlego de sete gatos. Os craques da família e do time eram o Esquerdinha, goleador de chute poderoso e habilidade extrema e o Hélio, também conhecido como Mengálvio porque gostava de usar o calção bem abaixo do nível da cintura como o antigo jogador do Santos. O Hélio era o artista completo: nos dribles, nos lançamentos de longa distância, nas cobranças de falta. Era, enfim, um daqueles raros jogadores que podiam vestir a camisa 10 sem sentir nenhum peso.
Havia outros artistas: o Tiquinho na ponta direita era a versão local do Garrincha (quem viu o Floresta jogar na mesma época sabe que havia outras versões de craques famosos e que tinham a mesma habilidade, sem jamais terem sido profissionais: Friage, Didí, Daia, Airton, Fuzil...). Mas, voltando ao Vila Teixeira, quando o Tiquinho sofreu um sério acidente com sua lambreta, diminuiu um pouco a minha alegria de assistir futebol. Ele recuperou-se para a vida mas nunca mais pôde jogar. Numa das últimas eleições, encontrei-o como fiscal de partido e trocamos algumas palavras. Acho que o Tiquinho não tem ideia do que representou para os garotos da época e o vazio que deixou com sua ausência nas manhãs de domingo.
E outros mais: o Nelsinho na ponta esquerda, o Divor, que durante a semana, austero e formal de jaleco branco na farmácia da Mogiana, transformava-se no maestro do meio-campo do Vila aos domingos, o Dir, menos técnico que os demais, que como xerife na lateral-esquerda impunha respeito aos possíveis valentões adversários com entradas “na medalinha”. Afinal, isso também fazia parte pois um time como aquele era muito visado e alguem tinha que avisar logo cedo que, se fosse para engrossar, haveria troco. Havia também o Dola, o Lindóia, o Escoteiro, enfim, um cast completo de artistas que marcaram um período importante da minha infância.
Fui crescendo e também tive a minha própria chance de jogar naquele campo. Na primeira vez que nosso time da Vila Presidente Dutra (infantil Vila Teixeira, como nos denominávamos) jogou no campo do Vila Teixeira, minha emoção foi maior do que quando mais tarde estive nos gramados do Guaraní e da Ponte: era um sábado a tarde, mesmo dia do casamento do meu irmão Laerte e o jogo apresentou um episódio marcante; tive um desentendimento com o meu marcador, da mesma idade que eu mas bem mais alto e forte, com quem eu nunca tinha conversado antes mas já nutria um respeitoso ódio, como era natural entre membros de turmas rivais. Esse adversário violento, com quem corajosamente cheguei a trocar alguns empurrões naquela tarde, veio a se transformar no melhor amigo que tive na minha adolescência: o Pedro Almir Liza.
Pode até ser que boa parte do encanto e magia daqueles tempos estivesse mais nos olhos de um menino tímido e sonhador. É muito provável que as mesmas cenas vistas pelo homem prático e realista de hoje não ficassem tão marcadas, mas ficaram...
Eu tive a sorte de ter os meus ídolos de infância, no futebol, na música, no trabalho, entre os amigos, meus irmãos, meus país. Hoje, meus olhos mudaram e são muito mais críticos que os daquele menino, mas ainda retenho a ingênua esperança de que essa geração, que inclui meus dois filhos, saberá também sonhar e encontrar seus ídolos ao alcançe de um toque de mão, os seus camisa 10 craques indiscutíveis em quem possam se espelhar, no futebol e principalmente no jogo da vida.
Leonilson Rossi, 20 de Junho de 1991.