Meu décimo aniversário

O sol de primavera nascia entre nuvens quando abri os olhos naquela terça-feira. Era o dia mais esperado do ano: meu aniversário. Só se completa 10 anos uma vez na vida. 

Fui à aula na parte da manhã, não quis faltar. Terça era meu dia preferido porque tinha aula de Educação Artística com a querida e inesquecível Profª Danielle e dela ganhei um abraço de presente.

O sol já brilhava no meio do céu quando, no percurso de volta para casa, meu pai, assim como quem não quer nada, perguntou:

— Você vai ficar triste se não tiver presente?

— Não...

Sabendo da verdade, eu não me chatearia. Uma mocinha devia entender que nem tudo pode ser do jeito que queremos.

Voltando para casa, no entanto, encontrei em cima da minha cama uma linda caixinha do Ma Chérie, clássico do Boticário. Nesse kit vinham o perfume, um sabonete, xampu e condicionador. Minha irmã, ainda pequena, também ganhava presente no meu aniversário e quis um conjunto igualzinho ao meu. No ano anterior, ela gostou da boneca que ganhei de uma tia e eu lhe dei.

Minha mãe me chamou mais tarde e me deu um lindo diário cuja capa era cor-de-rosa, as páginas também tinham essa cor e logo no início havia uma dedicatória, posto que aquele seria o meu caderninho de recordações e a primeira assinatura foi a dela, que me chamou de “menina moça”. 

Eu teria poucos dias para conseguir um “autógrafo” da querida Profª Danielle, pois em duas semanas as aulas acabariam. Posso dizer que se há um momento em que me identifico totalmente com a Lisa Simpson é naquele episódio chamado Verão Quente, em que ninguém quer assinar o caderno dela. Isso me aconteceu. Bem, lá, no fundo, eu sabia que as outras meninas não gostavam de mim assim de graça, já era escrachado o bastante, não havia necessidade de cutucar aquela ferida. Se eu tivesse guardado o referido caderninho de recordações, presumo que não teria saudades de ninguém. 

A nostalgia que às vezes me toca em relação à infância diz mais a respeito dos castelos construídos em cima das nuvens de algodão, das aventuras imaginadas antes de dormir, de sonhar acordada escutando música, de ser autora das novelas onde meus brinquedos eram os personagens. Diz respeito daquela inocência perdida, de quando meus pais eram mais jovens e saudáveis, as preocupações eram poucas, embora nunca tenha sido eximida das frustrações.

Que delícia sentir o cheirinho de bolo formigueiro assando, tomar banho para passar o perfume novo, reunir todos em volta da mesa para a confraternização que, embora fosse simples, era rica de amor e boa vontade.

O pátio da casa era um bosque encantado e eu a condessa aventureira, correndo para lá e pra cá, até o céu escurecer, para encontrar um tesouro impedido. Eu já era uma contadora de histórias, só não tinha — e nem sei se ainda hoje tenho — muita habilidade em ilustrar as ideias no papel.

Vovó não viria porque estava de plantão e ainda que saísse do hospital às sete, estaria muito cansada, logo, o dia seguiu-se sem alterações, pois jantamos, depois fomos ver novelas. Quando começava mais um capítulo de Pérola Negra, escutamos a buzina de um veículo. Por descarte, só poderia ser a Brasília amarela.

Em pouco tempo, ouvi alguém perguntar lá de fora:

— Onde é que tá a aniversariante?

Era vovó.

Ela entrou pela porta e veio abraçar, desejar felicidades, sempre amorosa, cheirosa. Se chegasse uma hora depois, encontraria todo mundo dormindo.

Meu avô buscou-a no hospital após o expediente e eles fizeram questão de cruzar a cidade para dar um alô e trazer a boneca da Maria das Chiquititas, presenteando minha irmã com a Mili. Foi totalmente inesperado. Ela trouxe risóles com recheio de carne moída e também a sua contagiante alegria. Difícil não fazer uma associação com o aniversário do Lucas Silva e Silva, da série Mundo da Lua. Vovó foi o Tio Dudu e deixou o melhor para o final, nem foi pelo brinquedo e sim pela presença.

Minha irmã, logo depois que vovó foi embora, quis trocar de boneca comigo porque era fã da personagem Maria. Cedi sem grande resistência. 

Anteontem, enquanto conversávamos, ela me confessou:

— Às vezes dá a impressão de que nenhum dos dois morreram, que eles continuam lá na casa 347 e a gente vai ver no identificador de chamadas o número 5397.

Ele se foi pouco tempo antes da OMS decretar a pandemia da COVID-19, ela nos deixou quando Otávio Jordão fez sua viagem, época de rígidas restrições sanitárias, deixando nos corações de todos também um grande vazio porque, se não bastasse a dolorosa despedida, ainda por cima, nem sequer ter o direito de dar um último abraço.

— Eu sentia como se a vó fosse imortal, como se nada pudesse acontecer com ela, que ela estaria sempre lá...

Para uma Julieta que conheceu o seu Romeu também jovem, casou-se, engravidou e enviuvou poucos meses antes de mamãe vir ao mundo, teve um parto complicado, quase morreu, de depressão pós-parto sofreu, buscou o amor com homens que não a amaram de verdade, enfrentou tantas humilhações e mesmo com todas as expectativas a jogando para o fundo do poço, deu o que se classifica em “volta por cima”.

Naquela noite de terça-feira, vovó ficou pelo menos para comer um pedacinho de bolo e lamentou não poder ficar mais tempo, mas não podia.

No meu último aniversário, o telefone de final 5397 não apareceu no identificador de chamadas, nunca mais aparecerá. Ela não estará no banco do passageiro de nenhum carro, nem da Brasília amarela, nem do Santana bordô, nem do Gol prata, assim como no dia 19 de julho não podemos telefonar, nem tomar um café com a aniversariante e ver como estão as galinhas, os gatinhos, os cachorros, os pés de couve e bater papo na cozinha, enquanto a hora passa e leva as preocupações embora.

Hoje é dia de toalha felpuda, daquela tão molhadinha e macia, que derrete no céu da boca, doce e leve como a imaginação de uma criança que acabou de celebrar o décimo aniversário. Deixemos as lágrimas para as despedidas, a saudade é aquela marquinha a nos lembrar de que, na soma de tudo, a alegria sempre sairá em vantagem.

 

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Curiosidade: iniciei este texto no dia 10 de novembro de 2021, no entanto, deixei-o de lado por alguns anos, reli-o e me ocorreu que seria libertador concluí-lo. Obrigada pela leitura! 🩷

Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 07/07/2024
Código do texto: T8101889
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