Dicá

1. Casos de Amor e de Ódio

Numa dessas manhãs de domingo, fui ao campo do Guarani atraído pela divulgação em torno de um jogo da Seleção de Masters.

O sol era inclemente, tornando a manhã muito mais apropriada para uma piscina e mesmo assim debaixo de um amplo guarda-sol, com uma cervejinha bem gelada e em pleno exercício de uma merecida preguiça dominical.

Colocar garotos de 15 ou 16 anos para correr às 11 da manhã de Novembro debaixo daquela “lua” já seria insensatez. Imaginem então um grupo de “coroas”, nenhum deles com menos de 40 anos.

O Gerson, aquele da “canhotinha de ouro”, com a cabeça totalmente desprotegida por uma calvície reluzente era o o que mais me preocupava. Eu, desconfortavelmente sentado nas curtas arquibancadas mas pelo menos ao abrigo do sol, não conseguia me sentir à vontade naquele calor sufocante, mesmo com o providencial auxílio do sorveteiro. Acho até que a razão maior do meu desconforto era o sacrifício daqueles “velhinhos” o que só me fez admirá-los ainda mais.

Ao vê-los alí, resgatei um pedaço da minha própria vida, pois admirá-los ou odiá-los, dependendo se jogaram na Ponte, Palmeiras ou quando na Seleção (casos de afeição) ou nos clubes rivais (casos de temor), povoou os meus sonhos e preencheu os meus dias de menino que amava futebol.

A seleção de masters é composta de muitas dessas figuras, alguns mais admirados, outros mais temidos, poucos ignorados.


2. O Feijão Salvador


Paulo Sergio, goleiro do Botafogo carioca, de curta passagem pela seleção e que nos seus tempos de atividade normal alternava defesas miraculosas com frangos monumentais.

Zé Maria, o “super-Zé” de técnica razoável mas de muita raça e correria, que na Portuguesa e principalmente no Corinthians encarnou o espírito guerreiro das torcidas fanáticas, que admitem uma derrota e uma jogada menos elaborada, mas jamas aceitam a falta de empenho. O Zé atendia perfeitamente esse anseio com garra e dedicação.

Luis Pereira, o antigo “Luis Chevrolet”, que eu ví jogar nos seus tempos de São Bento, fazendo dupla de zaga com Marinho (o Perez). Luis Pereira foi um dos maiores zagueiros centrais brasileiros, pois ao mesmo tempo que impunha respeito e garantia segurança na área defensiva, freqüentemente arrancava com energia e surpreendia os adversários com gols que muito ajudaram a “academia” palmeirense. Além disso, foi um dos maiores sucessos entre atletas brasileiros que jogaram no exterior. Esteve por alguns anos no Atlético de Madrid para onde foi junto com Leivinha e era considerado um dos maiores jogadores da Espanha e da Europa.

Na seleção, também se saiu bem embora sua geração tenha sido desfavorecida em Copas do Mundo, por ter enfrentado o “carrossel holandês” em 74, a ponto do técnico e controlado Luisão ter perdido a cabeça e dado uma sarrafada memorável no Neeskens e ter sido expulso naquela semifinal em que perdemos por 2 a zero (foi pouco). Não foi campeão do mundo, mas foi grande craque, que no final da carreira ainda teve fôlego e futebol para jogar no Flamengo, novamente no Palmeiras, Portuguesa e até na Central Brasileira de Cotia, pois afinal o Luis sempre foi mesmo muito brincalhão...

Amaral, o “Feijão” que eu conhecí desde os tempos de infantil e juvenil, pois em mais do que uma oportunidade joguei contra ele, naquele mesmo campo do Guarani. Ele, em plena formação para chegar ao que se tornou: um dos quarto-zagueiros mais técnicos do futebol brasileiro (dos que ví jogar só o Roberto Dias o igualou em técnica e o superou em energia) e eu, modesto e deslumbrado médio-volante do Floresta, todo o nosso time um mero coadjuvante naquelas manhãs em que, salvo raras exceções que guardo na memória até hoje, nos eram aplicadas sonoras goleadas.

(até os 25 ou 30 minutos do primeiro tempo, parecia que poderíamos até ganhar o jogo, depois o campo ficava incrivelmente maior e os bem preparados craques em formação de Guarani e Ponte tomavam conta de todos os espaços e o nosso sonho virava pesadelo)

Além do Guarani, Amaral jogou no Corinthians e Santos (até que numa tarde de sábado, a Ponte goleou o Santos por 5 a zero e o Amaral foi crucificado pela imprensa). Foi para o México e de lá só voltou quando encerrou a carreira. Na seleção, fez uma bela dupla com Oscar na Copa de 78. Quem não se lembra daquela partida contra a Espanha em Mar del Plata, quando o atacante espanhol entrou na área, driblou Leão e faria o gol com toda a tranqüilidade, não tivesse surgido no meio da linha do gol a figura gigantesca - ele que era magro e não muito alto- disposto a impedir de qualquer forma a entrada da bola. Até hoje não dá para entender o que se passou, mas ele impediu aquele que seria o gol da nossa desclassificação e nem mesmo “campeões morais” seríamos.


3. El “maestro del pibe de oro”

Wlademir, um daqueles exemplos de perfeita simbiose entre camisa e jogador. A do Corinthians lhe ficava tão bem que em nenhum outro clube, nem mesmo na seleção conseguia repetir as suas atuações na lateral esquerda do “Timão”. Jogou em outros clubes, inclusive na Ponte, mas o Wlademir completo só existiu no Corinthians.

Batista, que teve uma trajetória no sentido inverso. Começou como um grande craque, nos seus primeiros tempos de Inter de Porto Alegre, passou pela Lazio, Palmeiras e ao encerrar a carreira já tinha se tornado um cabeça de área limitado, como tantos outros. Prefiro lembrar-me do Batista do Inter: criativo e inteligente.

Gerson, o craque absoluto de uma perna só (se usasse as duas com igual maestria seria covardia). Aliás, falando em covardia, isso o perseguiu durante alguns anos principalmente após a Copa de 66, quando êle e outros jogadores foram injustamente acusados de não se empenharem devidamente. Deu a volta por cima e em 70 foi um dos nossos principais jogadores.

Começou no Flamengo (lembro-me das “Gazeta Esportiva Ilustrada” ou “Revista do Esporte” que o meu irmão Laercio comprava), nas quais aparecia o Gerson com um vistoso topete. Consagrou-se definitivamente no Botafogo e muito ajudou o São Paulo, com seus lançamentos milimetrados, seu espírito de liderança e suas engrossadas (quando necessário ninguém dava chutões e entradas na medalinha como ele). Jogou um pouco no Fluminense, seu time de coração, mas ainda hoje é lembrado pelo seu medo de andar de avião e, principalmente, por uma frase infeliz numa propaganda da cigarro: “Afinal, eu gosto de levar vantagem em tudo, certo?” criando a tristemente famosa “lei de Gerson”.

Rivelino, cerebral, desconcertante e explosivo. Dribles humilhantes – inventor do “elástico” – faltas, lançamentos, versatilidade, inteligência. Jogou no Corinthians e foi um dos atletas mais injustiçados da história do timão, pois a torcida cansou-se da longa espera pelos títulos que teimavam em não vir e descarregou sobre seu maior e único craque a responsabilidade pelos insucessos. Foi para o Fluminense e estreou num sábado de carnaval contra o próprio Corinthians – fez 3 gols e só não fez chover.

No Fluminense, Rivelino foi campeão de quase tudo o que disputou, formando um ataque arrasador : Gil(ou Cafuringa, dependendo do adversário ou do andamento do jogo), Manfrini, Flávio, Rivelino e Mario Sérgio.

É considerado pelo próprio Maradona o seu “maestro”, o que não é pouco.


4. O candidato a goleiro

Quem mais jogou na seleção do Luciano?

Rosemiro, um paraense magro e feio, chamado “carinhosamente” de “bibelô de quarto de bruxa”, que jogou no Palmeiras e em outras equipes mas que nunca se definiu como craque. Sua falta de posição não ajudou: lateral ou ponta? Seu maior sucesso foi na seleção de novos, com Carlos, Falcão, Claudio Adão e outros, que ganhou um Panamericano no México.

Romeu, o “cambalhota”, um ponta arisco, driblador e meio maluco nos seus tempos de Atlético Mineiro, onde era a versão em preto e branco do Joãozinho do Cruzeiro. Veio para o Corinthians e mudou um pouco o seu estilo de jogar, ajudando mais o meio de campo. Se nunca foi um verdadeiro fora-de-série, conquistou o respeito da torcida. Na seleção, jogou poucas vezes, mas em todas se saiu bem.

Edú, o Jonas Eduardo Américo. Esse sim um ponta-esquerda sensacional, dono do drible mais curto, rápido e desconcertante do futebol mundial. Era um pesadelo para os laterias (Forlan, Eurico, Zé Maria com certeza nem dormiam na noite anterior ao jogo e menos ainda na noite posterior). Para os goleiros e para a defesa como um todo, então, era um pesadelo. Além das jogadas de linha de fundo e cruzamentos precisos, tinha um chute poderoso. Veio menino de Jaú para o Santos e integrou o elenco que foi à Copa da Inglaterra. Foi o único que não jogou nenhuma das 3 partidas. Foi também uma das “feras do Saldanha” ajudando o Brasil a classificar-se para a Copa de 70. Foi um grande craque, embora com sérios problemas com a balança.

Paulo Isidoro, que se continuasse a jogar certamente hoje seria goleiro. Por que? Ele começou como ponta de lança agressivo, formando com Reinaldo no Atlético Mineiro uma dupla infernal, como já houvera sido no passado a dupla Lací e Dario. O tempo foi passando, êle foi recuando. Passou para um “falso ponta direita” que ajudava o meio-campo, depois recuou ainda mais e eu o ví jogar pelo Guarani como medio volante!!! Ainda bem que parou de jogar profissionalmente, pois seria um dos goleiros de mais baixa estatura do mundo.


5. Herói?

Do outro lado, a seleção campineira, também com seus craques inesquecíveis:

Valdir Perez, colega por um período curto na Faculdade. Veio de Garça para a Ponte e durante alguns anos foi reserva de Moacir. Quando assumiu a posição titular, teve grande destaque e foi contratado pelo São Paulo, junto com o Nelsinho Batista. O Nelsinho (que era Nelson na Ponte) depois foi para o Santos e nunca foi muito mais do que um jogador regular, mas o Valdir sempre foi destaque nas equipes em que passou, embora algumas vezes engolisse frangos homéricos também.

Tinha uma sorte incrível para pegar pênaltis, chegando a defender 2 num jogo da seleção brasileira contra a Inglaterra em Wembley. Essa “sorte” se devia à sua capacidade, frieza e principalmente o jeito especial de desconcentrar o atacante adversário com risinhos, brincadeiras e uma auto-confiança que certamente fazia deminuir o espaço entre as traves.

Nenê, que depois que saiu da Ponte virou Nenê Santana e jogou também no Palmeiras e no Vasco, porém sem nem uma parte do sucesso que aquí teve jogando pela macaca. É um caso similar ao do Wladimir, pois o Nenê deve ter nascido para jogar na Ponte. Desde os seus tempos de júnior, era um jogador tão destacado que muita gente – eu inclusive – chegava mais cedo ao campo apenas para vê-lo jogar a preliminar. Não havia nenhuma dúvida de que era um craque. No time de cima, confirmou essa certeza, porém não teve a mesma sorte em outras equipes.

Oscar. Ponte, São Paulo, Cosmos e principalmente seleção brasileira. Foi com certeza o melhor zagueiro central que já jogou nos times de Campinas. Imbatível nas bolas altas, também tinha categoria nas jogadas rasteiras. No seu início na Ponte, tinha um companheiro inseparável de zaga: Polozzi, e na época se discutia quem jogava mais. Um foi para o São Paulo e outro para o Palmeiras e em curto tempo qualquer dúvida desapareceu: Polozzi era bom, mas Oscar era melhor.

Lembro-me de um jogo Ponte e Santos, em que o Zezé Moreira, técnico do Cruzeiro na época, veio especialmente vê-lo jogar e recomendar ou não a sua contratação. A Ponte perdeu de 1 a zero, no único gol contra que o Oscar deve ter marcado em toda sua carreira e o velho treinador não enxergou o que viu... Infelicidade do Cruzeiro.

Na seleção, Oscar jogava ainda melhor. Era quase perfeito e praticamente não errava. Tinha o chamado “ espírito de seleção”. Vê-lo com a camisa amarela era algo tão natural que parecia que tinha sido feita só prá ele.

Juninho, outro que começou na Ponte e que era figura obrigatória em todas as seleções juvenís ou de novos que se formavam no Brasil. Nunca jogou, no Corinthians ou em outros clubes o mesmo futebol do início da carreira aquí. Teve uma seríssima contusão num choque com o Vaguinho e que na época foi motivo de muita polêmica.

Santos, o velho Santos da antiga geração de jogadores da Ponte do final dos anos 60 e início dos 70: Wilson, Nelson, Samuel, Araújo e Santos; Teodororo, Roberto Pinto e Dicá; Alan, Manfrini (Nelson Oliveira) e Adilson. O Santos era o mais discreto e o mais regular de todos. Jogou e deu conta.

Chicão, que veio do São Bento para a Ponte e foi para o São Paulo junto com Teodoro. Um valente. Físico avantajado, técnica razoável e grande vigor que impunha respeito. Na Copa de 78, no “caldeirão de Rosário”, foi um bravo. Protagonizou também um episódio triste, numa final de campeonato brasileiro no Mineirão, quando Neca – meia-direita do São Paulo – chocou-se com Ângelo – meia-esquerda do Atlético – e o Chicão “completou o serviço” pisando na perna ferida do Ângelo. Depois , tentou-se diminuir a gravidade do gesto, mas foi uma cena muito forte e que ficou registrada , pelo menos na minha retina. Achei que nesse dia o herói Chicão merecia outro adjetivo.


6. O Mestre Dicá

Essa figura merece de minha parte e de qualquer torcedor da Ponte um destaque especial, pois foi o nosso maior craque. Que me perdoem os jogadores e torcedores mais antigos que talvez tenham visto craques de igual dimensão, mas eu simplesmente me recuso a acreditar que alguém tenha jogado tanto como o Dicá.

Quando a bola chegava ao Mestre, era como se ela mudasse a sua textura e forma e se tornasse parte do seu próprio corpo, tal o domínio do Mestre e a mansidão com que ela se entregava ao seu comando. Pode parecer exagero de um admirador incondicional, mas ao sair de seus pés, a bola ia exatamente onde ele determinava, nem um centímetro a mais ou a menos, percorrendo caminhos sinuosos, descrevendo curvas, vencendo distâncias e barreiras, surpreendendo os adversários e encantando a torcida.

Dicá e a sua visão aérea das alternativas que uma jogada podia apresentar. Era como se estivesse ao mesmo tempo no campo e na arquibancada, no mais alto degrau vendo tudo, encontrando os espaços para enfiar as bolas mais imprevisíveis.

Craque melhor a cada dia. Batedor implacável de faltas. Colocava as bolas com tal precisão que mesmo aos melhores goleiros só era permitido um esticar de corpo e de dedos para, no máximo, saírem na fotografia do dia seguinte.

A importância do Dicá para a Ponte foi proporcional à de Pelé para o Santos e de Ademir da Guia para o Palmeiras. Foi no seu período de atividade com as camisas 8 (quando Roberto Pinto era o 10) e 10 (já craque consagrado no seu retorno da Portuguesa) que a Ponte conseguiu os seus maiores feitos.

Entre 71 e 76 jogou no Santos (fez algumas partidas memoráveis ao lado do Pelé) e foi campeão paulista pela Portuguesa. Não jogou na seleção brasileira por um descuido de cartolas e técnicos, mas ele está em muito boa companhia pois o próprio Ademir da Guia e Dirceu Lopes tiveram passagens rápidas pela seleção, numa época em que Gerson e Rivelino reinaram soberanos.

Quantos gols de falta? Quantos lançamentos precisos? Quantas vitórias? Quantos anos sem que o Guaraní ganhasse da Ponte enquanto jogou o Mestre Dicá? Quem um dia pagará tudo isso ao Mestre? A torcida sabe dessa dívida e, modestamente, essas páginas tentam resgatar um pouco da gratidão que ele merece.


Leo Della Volpe
Enviado por Leo Della Volpe em 31/12/2007
Reeditado em 23/05/2009
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