NYLZA (6/11/1924 - 13/9/2023)

Se a primeira professora não se esquece, a de Tiago é absolutamente inesquecível. D. Nylza Christo Miscow não só lhe incutiu noções iniciais de português, aritmética e conhecimentos gerais, mas o ensinou a amar o próximo, a apreciar seu país na justa medida, bem como a valorizar qualidades humanas essenciais, como honestidade e dignidade (ainda que lamentavelmente menosprezadas por tanta gente nas últimas décadas, sobremaneira por aqueles que deveriam servir de exemplo).

É bem verdade que o primeiro contato entre professora e aluno não podia ser mais desastroso. Quando ela entrou na sala de aula, surpreendeu-se com um menino de pé em cima de sua carteira escolar, a fazer caretas para os coleguinhas ao redor. Ele sentou-se de imediato, encolhido, ciente de que havia sido “pego em flagra” numa grave falta. Nem cogitou explicar que as caretas se justificavam para demonstrar que ele não caíra na tentativa de alguns colegas de ludibriá-lo. Calou-se e esperou a admoestação, apavorado.

Demonstrando, desde logo, a fineza e a sabedoria com que lidava com crianças e adultos, D. Nylza nem se referiu ao episódio e contentou-se em apresentar-se à turma, além de explicar sua metodologia de trabalho de forma compreensível para aqueles jovens infantes de sete anos.

A partir de então, o relacionamento com Tiago e demais alunos pautou-se por mútuos respeito e camaradagem. No que não era tão usual na época, a professora acompanhou a mesma turma da primeira à quarta série, o que só fez consolidar e aumentar a estima e a sintonia entre educadora e pupilos. Todos acompanhavam as aulas com atenção, participavam das brincadeiras organizadas em sala ou no pátio do recreio e dificilmente motivavam alguma repreensão mais séria por seu comportamento indevido.

Claro que a “fessora” precisava administrar as rivalidades ocasionais entre meninas e meninos, já que as primeiras costumavam levar a melhor sobre os segundos nos jogos de conhecimentos gerais, o que provocava protestos inconformados dos perdedores (de Tiago em particular). Ela conseguia, contudo, apaziguar ânimos mais exaltados e sabiamente manter a paz e a amizade reinantes na classe.

Saudosos tempos! Ir à Escola Afonso Pena, na Rua Barão de Mesquita, esquina com José Higino, no seu adorado bairro carioca da Tijuca, revestia-se de grande prazer para o menino Tiago. Tudo era aprazível: a caminhada de sua residência, na Rua Antônio Basílio, até a escola; o encontro com a jovem professora (então na casa dos seus 30 anos) e com os outros colegas; o aprendizado cotidiano.

A professora não tardou em descobrir que o garoto travesso do primeiro dia escondia um aluno bastante interessado, que logo se destacou por seus dotes de leitura e pela curiosidade intelectual. Quando ele lhe expressou a vontade de saber mais sobre automóveis e diversos outros inventos, presenteou-o com o livro História das Invenções, de Monteiro Lobato, o qual respondeu a muitas de suas perguntas, ademais de introduzi-lo no fascinante mundo do Sítio do Pica-Pau Amarelo.

O menino foi seguidamente agraciado com outras obras, que incentivaram o saudável hábito de ler de forma constante.

Tiago muito deve à querida D. Nylza, inclusive a dedicada preparação que ela lhe proporcionou, mediante aulas particulares, ao terminar a quarta série e prestar concurso para um dos grandes colégios privados no Rio de Janeiro. Sem esse apoio, jamais teria conseguido.

A convivência entre eles perdurou, mesmo após a saída de ambos da Cidade Maravilhosa. Nylza mudou-se para Petrópolis, ao casar-se e incorporar ao nome o Escarlate de seu amado Bartô (que tinha, como o ex-aluno - e este narrador -, o bom gosto de torcer pelo Fluminense Futebol Clube). Tiago foi morar em Brasília, onde começou a trabalhar, e, sempre que podia, ao vir ao Rio, esticava até a cidade serrana para rever sua professora.

As armadilhas da memória, à medida que se envelhece, prejudicaram maior lembrança dessas visitas ocasionais e dos diálogos então mantidos. O que importa, no entanto, é a certeza de que esses contatos contribuíram para reforçar os elos de amizade entre a saudosa professora e seu aluno.

Ao saber que ela foi reencontrar seu marido no Céu, Tiago sobe em sua mesa de escritório para novamente fazer caretas, desta vez dirigidas à Morte, que pensa separar amigos de longa data, mas nunca os privará do recurso definitivo contra o absurdo da existência humana: o carinho da recordação.

Brasília, 13 de setembro de 2023.