Há Cem Anos - I
Crônica romanceada
Quarta-feira, dois de maio de mil novecentos e vinte e três.
Naquele dia, na pequena Mombaça, do interior do Ceará, nem o desolador cenário pós seca foi capaz de amainar a alegria do jovem casal João e Maria. Nem a incerteza do futuro próximo ou as dores do parto e sequer o porte físico do reecém-nascido, já maculado pelos rigores do estio, foram suficientes para roubar o brilho dos olhares dos pais e dos parentes próximos. "Mais um pra me ajudar no aboio", proferiu João ao ouvir o primeiro choro, do terceiro membro da família. Se chamaria José e seria um vaqueiro de excelência, como seu pai. E aí, comeram a carne seca, que ainda restava, com farinha de macaxeiraa e rapadura, beberam água fresca do pote de barro. Tomaram também o resto de cachaça ruim, mas única, que estava prometida para o domingo... Assim terminou aquela quarta-feira, 02 de maio de 1923, há exato um século.
Acolheria o desejo do pai, seria vaqueiro e plantaria a própria roça para o sustento, aguardaria a idade chegar, enquanto chegavam os outros irmãos. José, era calmo, frio e calculista. Resignado sim, mas inerte, nunca. Logo cedo deduziu que num futuro próximo a equação trabalho-comida iria ruir. Deveria haver outra forma de sobreviver, sua cabeça mal sustentada pelo corpo desnutrido não queria encerrar aquele assunto e sempre que era permitido, "viajava" por outros mundos, não muito distantes da sua realidade, mas muito mais amistosos, menos hostis.
Ao batizar-se o vigário abusou da prerrogativa de autoridade religiosa e escolheu seu sobrenome. Assentou no livro da Prelazia e no batistério "José Sabino da Silva". "Silva" ganhou da mãe, "Maria Sabina da Silva". Filho de "Sabina", "Sabino" é. O nome do pai, João Severino de Souza, não era bom: "Severino" às centenas e "Souza" pra todo lado. Abaixo de Deus o Santo Padre, portanto, tudo bem. Os outros irmãos, para cada um haveria outra regra, ao critério do vigário que os batizasse. José, no ceio da família e amigos, seria Dedé, apenas.
A pobreza do entorno era cada dia mais profunda. Alí, apenas um tinha uma vida boa, ou pelo menos, bem melhor que as dos demais. Era o patrão, o dono das terras. Zé Sabino, incoformado, pensava mil maneiras de mudar de vida. De uma coisa, já aos quatorze anos, tinha certeza: Tinha que mudar a ordem das coisas. Muitos anos depois ouviria no rádio um lamento sobre o qual não fazia a menor ideia da origem, mas o pensamenteo era o seu
Mas plantar prá dividir
Não faço mais isso, não.
Eu sou um pobre caboclo
Ganho a vida na enxada
O que eu colho é dividido
Com quem não prantô nada
Se assim continuar
Vou deixar o meu sertão
Mesmo os olho cheio d'água
E com dor no coração¹
"Onde está o Dedé?", um irmão peguntou aos demais, certa manhã do ano de 27. A resposta ficou em aberto. "Esse moleque nunca deu para o trabalho. Deve ter ido atrás de aprender uma profissão, para ser vagabundo", agora o pai concluindo sobre o ocorrido. No entando, dois anos depois veio a resposta: Dedé era outro. Agora tinha duas profissões, pintor e ferreiro. Uma obra do Governo Federal na redondeza lhe dava um sálario de dez contos de reis por semana, quando o normal para os "braçais" era de apenas dois. A bonança e fartura deu o ar da graça na familia. Não duraria muito, mas ainda assim foram bons momentos.
Homenagem ao meu saudoso pai, que hoje comemoraria seu sentenário de vida.
¹ Fragmento da música Sina de Caboclo de João do Vale.
Revisão Ortográfica: Geciildamaria