Direita não!

Era magro e de estatura baixa. O cabelo, muito crespo e abundante, muito português na aparência e na fala, mesmo com tantas décadas de Brasil. Pensava que tinha vindo para o Brasil por perseguição política de Salazar, mas chegou no final da década de 50, porque decidiu encontrar os “patrícios” e parentes, e como eles, ter uma vida melhor.

Desgostava de Salazar, mas, por que tendo sentido a mão do ditador, se manteve à direita? O fato é que nutria especial desprezo por vários dos mais caros comunistas. Foi um eleitor fiel da direita e um divulgador dos costumes e interpretações do cotidiano dela, uma vida à qual nem ele mesmo pertencia.

Tinha várias habilidades.

Exímio cozinheiro e confeiteiro de doces portugueses, seu conhecimento sobre pasteizinhos de Belém era profissional. Tinha um forno de barro em sua casa em SP, rodeado por um impecável jardim, um jardim europeu.

Pintava, escrevia seus poemas, e, fazia esculturas. Uma delas, ele a retirou da natureza: um tronco silhueta humana, à qual ele instalou uma vara e uma lanterna real e sobre a qual explicava: é Diógenes, de Sinope, a lanterna acesa a procura de um homem honesto****.

Casou-se com minha madrinha, irmã de minha mãe, ambos solteiros e já com idades em torno de 40 ela, 50 ele no ano de 1973. Ela era muito linda e dentre as mulheres da família a mais estudada. Por incentivo dela, Benjamim estudou e de corretor de imóveis tornou-se advogado.

Um dia pensando muito na intransigência política dele, e na indignação que sentia, resolvi que não podia entregar os pontos sem tentar. Como um gesto obrigatório, uma única-última vez, fiz um esforço.

Uma gravação rudimentar, tipo som ambiente, levou até esse tio, três músicas que escolhi e mandei numa fita cassete, com as devidas explicações: “Tanto mar”, “Cálice”, “Fado Tropical”. Redigi uma carta sobre a intolerância e a ignorância.

O tempo passou, e quando não esperava mais qualquer manifestação, eis que o melhor aconteceu e recebi uma resposta.

Ele se sentiu honrado por minha tentativa de conversar com ele. Pareceu emocionado com o "Tanto Mar", 1ª versão, composta por Chico Buarque de Hollanda para homenagear o 25 de Abril de 1974, a Revolução dos Cravos, no Portugal dele*. Afirmou desconhecer que o cantor a tivesse composto, e que revia nesse momento o conceito que dele tinha. (Ah!)

Ao “Cálice”, que se trata de uma canção de protesto que ilustra, através de metáforas e duplos sentidos, a repressão e a violência do governo autoritário**, ele disse não ter entendido. (Ah!).

Mais ou menos idem para o "Fado Tropical ". Nessa canção, Chico Buarque e Ruy Guerra "propõem um retrato crítico do Brasil colonial, que corresponde em filigrana ao país tal como se encontrava sob a ditadura civil-militar." ***

Constatei como as palavras impressionam.

Essencialmente, percebi como as palavras sempre bem ditas de Chico Buarque aclaram dúvidas, remetem às causas primeiras e desmoronam grandes confusões. Chico fez isso por um português conservador e teimoso, mas que por um tempo, não sei quanto, e de que forma deu uma trégua à própria intolerância.

Viva Chico!

Ditadura nunca mais!

Sem anistia!

viva tio Benjamim.

*https://dialogosdo

sul.operamundi.uol.com.br/cultura/52397/chico-buarque-fala-e-canta-o-25-de-abril

**https://versoseprosas.com.br/historia-da-musica/historia-da-musica-calice/

***https://www.google.com/search?q=letra+de+chico+buarque+fado+tropical&oq=&aqs=chrome.0.35i39i362l8.909125472j0j15&sourceid=chrome&ie=UTF-8

****https://www.lpeu.com.br/q/rmm4j