SENTIDA PARTIDA
.."Quando morrer, buscarei meus instantes ao lado de ti.."
Algum lugar da Biblia
Minha querida amiga Gaía, bezerrense da gema, a última filha do senhor Joaquim e dona Inês Peru a nos deixar. Filha legítima da rua Vidal de Negreiros, irmã dos antigos moradores desta rua, fiel escudeira da moral e dos bons costumes. Referência dos foliões amigos por ocasião dos antigos carnavais quando a sua casa os recebia com alegria e bate bates. Hoje, este feito faz parte do passado: Gaía levou consigo a alegria, a receita dos licores e batidas, a musicalidade dos antigos carnavais. Gaía era irmã do também saudoso Tarcísio, o “Zé Pereira” que abria o carnaval na estação de trem quando a locomotiva parava às 20 horas. Os foliões, alegres, ofereciam as chaves da cidade ao lendário Tarcísio. Sem esquecer que Tarcísio era um exímio passista, um perfeito malabarista do frevo.
Pois é... Gaía se foi... Foi uma partida muito triste, muito mais triste do que a própria tristeza possa oferecer: morreu sozinha, sem uma assistência dos vizinhos, morreu numa data imprecisa, só tomaram conhecimento quando o seu corpo já estava em avançado processo de decomposição... Muito triste... Os seus restos mortais não se prestaram a um honroso velório; sem acompanhamento até sua última morada, a A sua carne foi dada aos vermes bem antes de um religioso sepultamento.
Gaía foi uma pessoa pura, inocente e sem maldade. A modernidade não alcançara a sua arraigada brejeirice. Soube preencher muito bem o seu universo de pureza e simplicidade. Fantasiou o seu viver, criou um fictício bem querer e, nesse aficionado mundo de ilusão, vivenciou romances incríveis com o seu imaginário marinheiro que navegava por mares distantes, infinitos caminhos marítimos que se perdiam nas brumas de seu íntimo pensar.
A nobreza do ser humano é medida por sua capacidade de rememorar bons acontecimentos da existência, em conservar na memória essas passagens e ter a oportunidade de expressar o reconhecimento e gratidão a quem participou do nosso convívio e firmou uma sólida e sincera amizade.
Por ocasião da partida de minha irmã Necy para o Rio de Janeiro, Gaía a substituiu como ajudante na mercearia do meu pai. Ela era como membro da minha família.
Atualmente, estamos vivendo uma fase do 'descartável', onde a hipocrisia tenta demonstrar que nesta vida 'nada tem valor'. Neste imbróglio, a palavra “sentimento” perdeu o real significado, passando a ser um mero adjetivo; onde fica a “alma”, nesta atual conjuntura? Em nome da arrogância e da ausência de um perfeito sentimento religioso, tentam aniquilá-la. O puro materialismo, este mecanismo demoníaco, leva o ser humano à ambição e passa a imaginar que bens materiais, sede desenfreada de poder o conduzirá ao triunfo “eterno”. Ainda bem, que em meio a este desprezível império do mal, encontramos criaturas magníficas despenseiras de um mundo de paz, amor e fé. Uma dentre essas criaturas, Gaía foi exemplo de denodo e determinação concernente à fé católica.
Toda vez que estava em Bezerros eu visitava a inesquecível amiga, minha ex aluna do Ginásio São José. Tomado por um sentimento avulso, esta sua triste partida me fez meditar sobre a morte e sua imprevisível atuação sobre todos nós, os seres viventes neste vale de lágrimas.
Agora, Gaía é mais uma na estatística macabra dos que partem para nunca mais voltar. No mundo além túmulo a nossa amiga encontrará o tão sonhado marinheiro e será feliz para sempre...
Descanse em paz, meu anjo!
“Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor”. Romanos, 8 -38
Carlos Lira