A CRISTALEIRA DE DONA GEMYNE

 

 

Foi no ano de 1983 que conheci Dona Gemyne. Ela já era bem idosa. Fiquei impressionada com seu apartamento em São Paulo, na Rua Albuquerque Lins, Higienópolis, principalmente pelas coisas antigas que ali existiam. O imóvel era grande, com quatro quartos, uma sala enorme que comportava 3 ambientes: Sala de estar, sala de TV e de jantar. Grossas colunas de sustentação do prédio ficavam pelo meio desse recinto. Ali tudo era grande, cozinha, lavanderia e quartos. Havia uma dependência de empregada com banheiro, junto à lavanderia. Outros dois banheiros serviam aos moradores. Os móveis eram antigos, pesados, de madeiras nobres, escuras. A sala grande não tinha divisões e amplas janelas, que chegavam quase até o chão, permitiam a entrada do sol e de muita claridade no ambiente. Através delas podíamos ver o movimento da Alameda Barros. A decoração antiga denotava personalidade e era tão acolhedora quanto a proprietária.

 

Na parede da sala de estar ficava um grande retrato, pintado com arte, da sogra de Dona Gemyne. Sua larga e vistosa moldura combinava muito com a beleza da retratada. Esta personagem foi vítima da gripe  espanhola em 1914.

 

Na parede, ao lado da mesa de jantar ficava um relógio grande, de corda, que funcionava perfeitamente e que batia solenemente as horas cheias. Encostada à parede oposta à mesa, havia uma bonita cristaleira, lotada de objetos que não eram usados nas refeições diárias, somente em ocasiões especiais. Porcelanas decoradas, talheres de prata, copos e jarras de cristal, bibelots. Certamente, esses objetos foram, em sua maioria, presentes de casamento e deviam ter mais de 60 anos, uma vez que Dona Gemyne se aproximava dos 80.

 

Por ocasião de minha visita, acompanhada de seu filho, com quem eu iria compartilhar a vida pelos 30 anos seguintes, Dona Gemyne abriu a cristaleira e de lá retirou uma pequena bandeja de prata, sobre a qual repousava uma licoreira de cristal, finamente trabalhada, com seus seis delicados cálices. Entregou-me esses objetos pouco usados e a tanto tempo guardados com carinho, dizendo-me que tinha certeza de que eu continuaria a cuidar deles como ela o fizera por tantos anos. Agradeci e fiquei lisonjeada porquê via que naquela cristaleira ela guardava seus tesouros.

 

Dona Gemyne já faleceu, como também seu filho, meu companheiro. A licoreira e seus acessórios ainda estão comigo, cuidadosamente guardados, em memória desta mulher que  conheci idosa e com a qual criei um vínculo de parentesco e admiração. Eu uso esse recipiente como objeto de decoração, uma vez que não tomo e nem tenho o costume de servir licor. Pena que, morando em Curitiba, eu tenha convivido pouco com minha sogra. No fim da vida, quando íamos visitá-la, ela se mostrava radiante quando chegávamos e quando nos despedíamos para voltar para casa, ficava chorando à porta, dizendo que não a encontraríamos mais da próxima vez. Isso nos cortava o coração.

 

 

 

 

Aloysia
Enviado por Aloysia em 04/02/2023
Reeditado em 04/02/2023
Código do texto: T7711522
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.