FOTO EM 25 DE JANEIRO DE 2023
Em 2018 escrevi e publiquei pela Editora Scortecci o livro "Sonetos no outono de 2018". Dele recolhi cinco sonetos que se referem a faces em mim da cidade de São Paulo (um deles dizendo do terrível incêndio em edifício no centro da cidade, no Dia do Trabalho), a cidade onde nasci, onde tenho vivido desde sempre. A cidade que amo, apesar de todas as suas faces tão contraditórias, suas belezas e seus horrores. A cidade onde não posso jamais estar. Ei-los, os cinco sonetos:
SAUDADE
Tenho tanta saudade de São Paulo
Cidade onde nasci, moro, estou
Estou sem jamais estar, que eu sou
alguém sempre calado e que cala
Nesta sala, o casco de um navio.
Um casco muito raso, certamente
Correndo sempre o risco de tombar
Que sem profundidade este mar
Mar faz de conta: Pensamento-mar.
Proa voltada para uma paineira
Popa voltada para um dos banheiros.
E quem venha a ler tal absurdo
Que saiba perdoar o incauto autor
Sua saudade, o seu surdo amor.
RUAS-PENSAMENTO
O pão na padaria, feira livre
Dar outra volta ao mesmo quarteirão
Pequenos nadas de vida inteira
Os nadas tão gratos ao coração.
O mundo todo é sempre a mesma aldeia
Na megalópole, diletos vãos
Solos que pés percorrem cada dia
Solos que não costumam dizer não.
Os que estão alijados desses nadas
Criam cenas idílicas, pois não?
Ruas que nos sabiam, essas próximas
Ruas-irmãs, que não nos desertaram
Que, de vivas, se fazem nossos sonhos
Ruas reais, tais ruas-pensamento.
PORTAL DO JARDIM BOTÂNICO
No Jardim Botânico da cidade
Há um portal belíssimo, fechado
Todo o tempo. Os casais lhe pousam
Em frente, para sempre ostentando
Na foto, voo de felizes pássaros.
Árvores por detrás desse portal
A ostentar também a majestade
E o poder de história ancestral.
O portal, cerrado todo o tempo
Com sua pedra verde incrustada
Tal fora uma virgem esmeralda.
Sempre cerrado e eu, tantas vezes
A olhá-lo, como sempre imersa
No mesmo sonho, na mesma renúncia.
O AR VITAL
O desejo nítido como um Sol
E uma Lua, em conjugação.
No centro da noite, corpos na busca
Um do outro. Em casas diferentes.
No silêncio mágico me ouvias
E eu te adivinhava a me ouvir.
Entre nós, o Sol, a Lua, estrelas...
De mundos esquecidos, a inocência.
Tu em um lugar da noite, eu noutro.
Éramos Lua e Sol primordiais.
Em nós, uníssono, o ar vital
A vibrar, instrumento musical.
E tudo noutra Terra, noutra Vida
Nesta vida, São Paulo ancestral.
TRAGÉDIA ANUNCIADA
Edifício tombado, chamas vivas
Apenas tudo cinza alguns segundos
Vidas vindo abaixo, queda livre
De vidas... Tão perto, o antigo Largo
O tão antigo Largo, tanta História.
No Dia do Trabalho, Ironia.
Cidade de ironias e de mortos
Os mortos sonhos, mortas esperanças
As vidas-cinza, em cinzas tecidas
Mais uma vez... E outra... E mais outra...
A Vida chora... Começa outro incêndio...
Presenças ainda vivas... Ainda...
Milagre-vivo, essa gente viva
Sobrevivente sempre a si mesma.