Registros de cotidianos excepcionais com um pai extraordinário.
Tal pai, tal filha.
Doce, sorridente ao final de cada frase, tão bem humorado, tinha o dom de contar piadas, e nos intervalos de tudo isso, embalava seu silêncio com o olhar perdido no céu, acho que decifrando nuvens ou estrelas. Assim era o meu pai. Alguns o tinham como um distraído.
Comumente eu passava os fins de semana na casa dos meus pais, pois morava a apenas 70 km deles. Tinha um Chevette, meu primeiro carro, eu, a 5ª proprietária. Comprei-o à vista em outro estado, com os proventos do meu primeiro emprego, os salários, aliás, muitíssimo maiores do que os daqueles que foram meus professores da estadual, muito mais titulados que eu. Tempos de Maluf governador, cuja frase dirigida especialmente aos colegas do ensino médio, tornou-se famosa: “professora não é mal paga, é mal casada"*. Um amigo ajudou-me a trazer o Chevette chocolate quando me desloquei de volta para o estado de SP. Ele viajou 720 km sem problemas.
Ao término do fim de semana retornava para minha casa na segunda feira, saindo bem cedinho e indo direto para o trabalho. Naquele dia, às 6 horas da manhã, sentei-me à mesa para o café. Papai me cumprimentou, conversamos, e sem mais me disse: “Sabe que um senhor bateu aqui de madrugada, insistentemente, para perguntar se um carro marrom era de nossa propriedade, porque ele saiu andando sozinho (o carro) em direção ao rio”, “ele insistiu muito e logo cedo tive que explicar e explicar a ele: “ Claro que não, de forma alguma amigo, não há esse tipo de carro aqui”. Eu pulei da mesa e disse -”pai, só pode ser o meu Chevette marrom!”- Corremos verificar e eis que o Chevette estava contido pelo poste da esquina, há uns 6 metros da nossa casa. Corremos mais uma vez e o carro que poderia ter contornado o canteiro e ido numa descida, em direção ao rio, por sorte subiu a guia e o poste segurou-o. Ocorreu que eu não puxei o breque de mão, e não o guardei na garagem naquela noite. Ficamos muito preocupados pelo perigo que representou à vizinhança. Ponderamos que tivemos muita sorte, mas ficamos desgostosos. Papai levantou o carro e o colocou na rua e ele funcionou, tinha um pequeno arranhão. Como acontece nestes casos onde a tragédia não se consumou, sobrou o cômico. Cabeças nas nuvens, tal pai, tal filha.
“Plano” Ecológico
Numa tarde, meu pai e eu fomos caminhar devagarinho junto à margem do rio próximo da casa dele. No canteiro estreito das margens, uma fileira interminável de árvores do gênero Ficus. Como ele costumava admirar quase tudo nesse mundo, elogiou como as árvores estavam frondosas. Delicadamente fiz o discurso ecológico básico do absurdo do assoreamento do rio, cujas margens estavam reduzidas e concretadas; das árvores escolhidas serem exóticas, ao invés de nativas, o que significava que determinavam impedimento dos bichinhos e pássaros, porque não identificadas como alimento e locais para ninhos. Acrescentei que era ruim porque a flora exótica compete por espaço e água com a flora nativa. De fato, há tanto tempo os estudos ecológicos ensinam tais lições, mas o que se vê é total indiferença, quando não, desprezo pelo que a observação e experimentação oferecem. É comum nas cidades a escolha de espécies exóticas, e quando não, espécies exóticas invasoras para a arborização pública. Finalizei: “Ecologia não combina com visão lucrativa, o planeta é vivo, portanto, a interferência tem que ser cuidadosa e responsável.“
Ele me ouviu atentamente, parou e me olhou com aqueles olhos de bondade e passou a elogiar meus argumentos que até tentei apontar quão singelos eram! Disse todo admirado: “Puxa, que ideias boas minha filha, se encontrar alguém que não for “cupincha” do prefeito (de direita), vou passar para ele”. Retruquei: “papai não são ideias minhas, e certamente farão nada pela situação desse rio que sem vazão, volta e meia causa tantos danos nas casas às margens”. “Lamento, mas como gostei dessa conversa minha filha”, e voltamos para casa.
Como era agradável esse meu pai! O tema meio ambiente piorou demais nos últimos anos. Para os rios também. Tínhamos a lei do Código Florestal, mas foi alterada pelo presidente da república em dezembro de 2021**, permitindo a regularização da construção de imóveis e edifícios às margens de cursos e corpos de água.
Pai coruja
Minha tese de mestrado eu dediquei a ele e a minha mãe. Um dia, encontrei uma enfermeira que desejava identificar meu nome por saber se eu era filha dele. Meu pai já havia partido. Quando eu me apresentei, ela sorriu e me contou que queria conhecer a autora da tese que ele levava à tiracolo circulando pelo local de trabalho deles. Com muito orgulho todos passaram os olhos pelo trabalho e leram as poucas linhas da dedicatória tão simples embora tão amorosa. Fiquei tão feliz ao saber que isso o deixava feliz!
Papai tornou tantas situações cotidianas excepcionais! Os risos que me provocou e desarmavam qualquer tristeza ou mau humor; as músicas que cantou e então o ar ficava leve e perfumado; e por ter se esforçado para que eu construísse alguma autoestima que é força vital para mim até hoje.
*https://noticias.uol.com.br/album/2013/09/02/qual-e-a-frase-mais-polemica-dos-82-anos-de-maluf.htm.
**Lei sancionada permite construção à margem de rio. https://monitormercantil.com.br.