Baitão, o irreverente
José Tarcísio Moreira era, também, José Tarcísio "Rildo", por causa do antigo jogador do Botafogo e seleção brasileira, Rildo da Costa Menezes. Mas, pela sua estatura e o fato de usar barba desde muito novo, Tarcísio virou mais Baitão, Barbão e Grandão. Alguns o chamavam de Tarcísio do Darci, por seu pai, o eletricista Darci Moreira. A família mudou-se para o Beco dos Canudos, hoje Rua Chiquinho Teodoro, no meio da década de 60.
Sua maior referência era a irreverência. Uma de suas travessuras de menino era "aprontar" em frente da casa de minha avó, Aurora Barbosa, também conhecida por Lóia, Lurica e Lilica. Era assim: Baitão levava café todas as tardes para seu pai, empregado na Companhia de Tecidos Pitanguiense, depois Tecidos Santanense. O café era acondicionado em garrafas de vidro, tampadas com rolha. Na volta da Fábrica, Tarcísio passava em frente da casa da vovó com o resto de café na garrafa, certamente guardado para a travessura. Sabendo que minha avó Lurica não gostava dele, se vingava botando a garrafa na frente da braguilha e ia derramando café pela rua, como se estivesse fazendo pipi.
E a vovó comentava, mordendo a língua de raiva:
- Esse menino do Darci não respeita ninguém. Minino "burcido"! Num guento ele!
Quando mudou para o Beco, já devia ter uns 8 anos, era comprido, mas ainda chupava bico, como se chamavam as chupetas de colocar em mamadeira "na minha época". Eu não ia muito com a cara dele no início, a irreverência era demais. "Minino burcido, sô".
Com o passar do tempo, passamos a ser companheiros inseparáveis para jogar bola, ir ao Jardim à noite para ver as "cocotas", nadar escondido no Areião, no rio Pará, e ir a pé na Cruz do Monte nos fins de semana. Esse passeio era quase de escoteiro, aprendíamos muito de natureza. A gente subia pelas encostas e descia pelas nascentes dos córregos. Como não poderia deixar de ser, bebíamos da água fresquinha e ainda encontrávamos frutas pelos caminhos.
Outro de nossos gostos comuns, como disse, era jogar bola. Tarcísio acabou ajudando a fundar a Sociedade Esportiva Galícia, ou simplesmente Galícia, time de adolescentes das turmas do Beco dos Canudos, Beco sem Saída. Dele participou a família Valério, com os craques Nadinho, Nenete, Jorge e o arqueiro Tuca. Mais tarde, quando eu já estudava em Belo Horizonte, se reforçou com os filhos do Bilico (Marcílio e Marconi); filhos do Zé Mosquito e outras famílias do Bom Jesus e redondezas. Ele era o terror dos atacantes ciscadores, porque não aliviava pra ninguém. E assim seguiu no futebol, chegou a jogar pelo Clube Atlético Pitanguiense, o CAP, até que, como todos nós daquela época, tínhamos de alçar asas para a capital e caçar nosso rumo na vida.
Sua irreverência, chamemos assim, se manifestava em qualquer lugar, em especial na sala de aula. Tonho, meu irmão, que estudou com ele no "Grupo de Lata", conta muitas de suas "artes" na escola. Ele era o que chamavam "pintão". Essa palavra não quer dizer nada além de bagunceiro, por favor! E ele gostava de irritar a professora e os serventes. Ainda é o Tonho quem diz que, um dia, na época em que o jogador Rildo, do Botafogo, citado lá no começo dessa homenagem, estava no auge, Baitão passou a assinar as provas e os deveres como José Tarcísio Rildo e a dizer que era esse mesmo o seu nome, sempre com aquela cara sacana e um sorriso sempre muito bonito.
Usava chinela de dedo. Um dia, no mesmo "Grupo de Lata", fez uma bolinha de papel e disse:
- Lá vai uma bomba de José Tarcísio Rildo.
Jogou a bolinha pra cima e, na caída, enfiou-lhe um chutaço. A chinela saiu do seu dedo e foi parar na cara da professora. O Sambém, inspetor de alunos, foi levá-lo em casa e informar aos pais o que tinha feito e da suspensão consequente.
Um dos passeios que fazíamos, além de subir e descer a serra seguindo os cursos d'água, era ir nadar no Areião, em Velho da Taipa. Numa dessas idas, quase morreu afogado. Estava com um braço na tipoia, mas mesmo assim queria nadar. A gente sabia que ele queria mesmo era se mostrar. Daí, avisamos que era perigoso nadar só com um braço, mas ele dizia que ia continuar sim, que tinha sido campeão olímpico com um braço só e ria das nossas preocupações. O rio estava cheio, o Reinaldo "Rhor", nosso companheiro de futebol, música e traquinagens, também avisou. Era perigoso. Ele, teimoso, insistiu. O lugar era um remanso, mas ele começou a afundar, o braço machucado não ajudava nada. Contei duas vezes que ele sumiu n'água, dizem que na terceira o cara se afoga. Baseado nisso, pulei n'água e fui mergulhando e empurrando o Grandão na direção do raso, até que escapuli das mãos dele que, na ânsia dos quase afogados, queria me agarrar a qualquer preço.
Cantava muito bem. Sua voz era de tenor muito afinada. Seu gosto musical era caipira raiz e gostava de Tonico e Tinoco, entre outras duplas da época. Fazia duetos impossíveis com Reinaldo Pereira de Souza, o Rohr, do Antônio Carapina.
As últimas vezes que nos encontramos, foram no bairro Pe. Eustáquio, em Belo Horizonte. Era um bar que ele frequentava, situado a uns 20 metros de sua casa. O Daniel Pereira Sales, meu sobrinho, me levava pra lá e ali nos divertíamos com ele, contando "causos" de Pitangui e de sua vida na capital, onde morou uns 40 anos. Tinha um sítio na Charneca, no município de Conceição do Pará, para onde sempre me convidava, mas nunca fui. Que Deus o tenha!