AS PERIPÉCIAS DE RAIMUNDINHO
Raimundinho, como é chamado pelas pessoas do seu vasto círculo de amizade, nasceu na região de Angico Torto, zona rural de uma pequenina cidade da zona norte do Ceará, na década de 1940, em uma propriedade denominada de Maravilha. Raimundinho, menino humilde, filho de agricultores que extraíam da terra o sustento da família com a plantação de roçados de milho, feijão, carnaúba, cuja palha era matéria prima na fabricação artesanal de chapéus, peneiras, tucuns, cestas, cordas, e se constituíam nas principais receitas da maioria dos nativos da região. No cercado próximo à casa, o criatório de bodes, cabras, ovelhas, porcos e aves, além de meia dúzia de vacas leiteiras, que ajudavam na alimentação da prole. Família que formava a mão-de-obra para o trabalho rudimentar, por não dispor de condições financeiras para o contrato de pessoas de fora. Raimundinho, o segundo filho do primeiro casamento do pai, não chegou a fazer parte do cotidiano da família, já que um triste acontecimento ocasionou a divisão do grupo familiar. Com apenas um ano de idade, sua mamãe faleceu de parto, e o pai, desnorteado, entregou o pequeno para uma tia cuidar, missão que a irmã exerceu com muito amor, e mudou-se para uma cidade do interior de São Paulo, onde continuou sua vida de agricultor, vindo rever o filho somente quinze anos depois, em visita ao Ceará. Raimundinho, depois dos cuidados da tia, passou a morar com um tio materno, num lugarejo vizinho, Morro Alto. Na grande seca de 1958, o tio resolveu arrendar umas terras no Piauí e mudou-se com a família para o município de Matias Olímpio e Raimundinho seguiu seus passos, pois não tinha outra opção. Mas o menino, com 12 anos, sonhava grande e ansiava por um futuro melhor e tinha como meta estudar em cidade mais desenvolvida. Então, foi em busca de um tio que podia lhe oferecer essa condição, numa próspera cidade da zona norte do Ceará. O tio concordou em receber o menino andarilho, mas o colocou na companhia da avó materna, que residia com uma filha, numa pequena casa. A avó, deficiente visual, era muito impertinente e severa, e não acolheu bem o neto, mesmo o colocando numa escola das antigas. O menino se destacou nesse rústico colégio primário e até ajudava a idosa professora em algumas tarefas com os alunos da classe. No entanto, o seu destino também não estava ali naquela progressista cidade. A convivência com a avó se tornou insustentável e em clima de muita discórdia. Planejou, então, fugir para Granja, cidade vizinha, onde residia uma tia paterna, mas não teve apoio e foi aconselhado a voltar para a avó. Porém, não era esse seu objetivo. Embarcou de volta em um trem de passageiros e foi até o final da linha, para uma cidade onde residia uma tia materna, que costumava acolher sobrinhos das pequenas comunidades, em busca de profissão, já que o marido era proprietário de uma tipografia. Chegando, trazendo a tiracolo uma pequena e surrada mala, o menino foi muito bem recebido e logo se engajou na família, tornando-se um produtivo colaborador dos tios, exercendo várias funções na tipografia, como hábil impressor, entregador de encomendas e cobrador de alguns clientes mal pagadores, tarefas que fazia a bordo de uma bicicleta, que ganhou pouco tempo depois, como recompensa. Na mesma noite do dia em que chegou àquela cidade, logo cuidou de se matricular numa pequena escola particular, e, para sua alegria e surpresa, após se submeter a um teste de conhecimentos com a conhecida professora da cidade, foi aprovado para cursar a quinta série primária e, ano seguinte, já ingressando no curso ginasial, após aprovação no concorrido exame de admissão. Na tradicional e secular Escola Técnica de Comércio Padre Juvêncio partiu com unhas e dentes em busca de seu sonho, que tinha como principal objetivo o concurso para uma importante instituição bancária. O desejo, a vontade, o sonho eram impulsos para estudar até altas horas, num quarto quente, escuro, baratas voadoras, muriçocas batendo umas nas outras, uma antiga máquina de escrever e diversos livros adquiridos de terceiros, e a arcaica lamparina que alumiava a sua tosca mesa de estudo e soltava fumaça que deixavam os olhos ardendo e vermelhos. Mas Raimundinho não obteve aprovação no certame a que se submeteu para o Banco do Brasil, não por falta de preparo, pois estava afiadíssimo nas matérias, mas por ter-se automedicado com comprimido indevido que o deixou sem raciocínio no desenvolvimento das provas. E, temporariamente chateado, deixou a cidade e a família que tão bem o acolheram e percorreu alguns caminhos difíceis, até se decidir rumar para a capital paulista, onde, após experimentar alguns empregos na iniciativa privada, voltou a se submeter a concurso público para outro Banco público, obtendo justa e merecida aprovação para a carreira de escriturário, com remuneração acima de outros níveis de carreira do próprio Banco. Aposentado, residindo em Fortaleza, voltou aos bancos escolares, submetendo-se, inicialmente, ao vestibular para o curso de Ciências Contábeis, que concluiu com galhardia, e fez pós graduação em Auditoria e Controladoria. Mas não parou por aí. Sua vontade de estudar e adquirir novos conhecimentos levaram-no a submeter-se ao vestibular para Direito, sonho que há tempos também acalentava. Aos 76 anos, está concluindo, nesta final de ano de 2022, o curso de Bacharel em Direito, depois de 5 anos de muito sacrifício, indo para a faculdade e voltando de transporte público, à noite, numa considerável distância do bairro onde reside. E é profundo conhecedor das leis e de tudo que diz respeito à carreira de advogado, pois não tem hora nem dia para se debruçar sobre os livros jurídicos. Certamente, desempenhará com maestria o ofício de advogado, pois domina com sabedoria a área jurídica, onde representará com muita competência e honestidade a justiça em todas as suas variantes.
Maria de Fátima Fontenele Lopes
Humberto Fontinele Lopes
12/10/2022