No início do Séc XVIII, à margem direita do Rio Mamoré - um dos formadores do Rio Madeira -, surgiu um povoado denominado Esperidião Marques. A Vila foi criada em contraponto à povoação boliviana Guayaramerim, localizada à margem esquerda no mesmo rio. Posteriormente, após o Tratado de Ayacucho, firmado em Abril/1878, recebeu o nome de Guajará-Mirim.

 

Guajará-Mirim, permaneceu como porto e entreposto comercial até meados de 1903, quando, em razão do conflitos entre brasileiros e bolivianos pela hegemonia para a extração do látex, e para evitar a deflagração de uma guerra que não interessava aos dois países, foi assinado o Tratado de Petrópolis, no qual, o governo brasileiro, em troca da aquisição do território compreendido no atual Estado do Acre, comprometeu-se com o governo boliviano, a construir uma estrada de ferro ligando os portos de Santo Antônio do Rio Madeira ao porto de Guajará-Mirim, a fim de promover o escoamento da produção boliviana.

 

À época da assinatura do tratado, constituiu-se o auge da extração do látex, conhecido como Ciclo da Borracha. O governo brasileiro, por força do Tratado de Petrópolis, construiu a Estrada de Ferro Madeira Mamoré-EFMM.

 

Com o advento da construção da EFMM, acorreu para as duas localidades, Santos Antônio do Rio Madeira - início da obra - e Guajará-Mirim - final -, gentes de todos os cantos do globo. De uma hora para outra, as duas vilas receberam, americanos, ingleses, portugueses, barbadianos, haitianos, chineses, nordestinos, nortistas, libaneses, sírios, turcos, gregos, etc etc etc.

 

Esses destemidos aventureiros continuaram chegando com o intuito de desbravar e povoar a selva e rios que circundavam as duas vilas. Esse povoamento durou décadas, intensificando-se durante a Segunda Grande Guerra com a chegada dos Soldados da Borracha, que em virtude do bloqueio pelos japoneses, aliados do Terceiro Reich, aos seringais malaios, acorreram aos seringais amazônicos para a extração do látex, matéria prima essencial para a tropas aliadas. 

 

A Roda do Destino girou, e após o Natal do ano de 1949, numa tarde do dia 29 de dezembro, desembarcou na Estação Ferroviária de Guajará-Mirim, uma jovem normalista de apenas 16 anos de idade.

 

Essa jovem mulher, de nome Aliete Alberto Matta, ainda abalada pela perda de seu genitor, Senhor Maurício Nunes da Silva Matta, não fez parte do contingente dos Pracinhas da Selva, mas montou um esquadrão educacional que se estenderia por todo o antigo povoado de Esperidião Marques.

 

Aquela mulher moça recém saída da puberdade, sequer imaginava que, junto com outras mulheres pioneiras, iria impulsionar, criar, um ciclo educacional que beneficiaria gerações da bela cidade de Guajará-Mirim, a Pérola do Mamoré (o escriba que vos informa teve a dádiva de estudar sob a supervisão da Professora Aliete Alberto Matta Morhy).

 

E hoje, passados tantos anos, no crepúsculo de uma vida tão laboriosa, e guardadas as devidas proporções, a Ilustre Professora, Senhora Aliete Alberto Matta Morhy poderia proferir, se a modéstia não a silenciasse, a famosa frase do Imperador Júlio César: “Veni, Vidi, Vici”.

 

Respeitosamente, apresento o seu depoimento em primeira pessoa:

 

“História de vida em Guajará Mirim / Rondônia

 

Nome: Aliete Alberto Matta Morhy

Filiação: Maurício Nunes da Silva Matta

Francisca Pereira da Rocha Matta

Naturalidade: Belém do Pará em 10/04/1933

Escolaridade: Auxiliar de Assuntos Educacionais – INSTITUTO DE EDUCAÇÃO DO PARÁ

Ensino médio: Colégio Presidente Vargas, exame Supletivo Superior: Direito, Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF aos 50 anos de idade.

 

Meu pai faleceu em 06/04/1949 - 4 dias antes de eu completar 16 anos.

Meu irmão que era Gerente do então Banco da Borracha, hoje BASA-Banco da Amazônia S.A, em Guajará Mirim, cuidou de mandar buscar eu e mamãe para perto dele, em razão de meu outro irmão morar distante e minha irmã, mais velha do que eu, já estar em sua companhia.

 

Esperamos terminar o Ano Letivo de 1949, durante o qual eu cursei a Quarta Série do Curso Normal.

 

Chegamos em Guajará Mirim no dia 28 de Dezembro de 1949. Em razão da transferência do meu irmão, fomos para Porto Velho onde casei em 17/01/51, antes de completar 18 anos, o que exigiu autorização do meu responsável.

 

No dia seguinte, voltamos para Guajará - isso em 1951 -, lá não tinha hospital, só um casarão de madeira construído pelo saudoso Bispo D. Xavier Rey; e também tinha somente um médico, o Dr. Hamilton Gondin, sanitarista do então SESP, mas fazia de tudo. Nessa época eu pesava 40 quilos e engravidei. No dia 27 de fevereiro de 1952, eu amanheci com dores e eu achava que a parteira e o Dr. Godin resolveriam o problema do parto. Às 21 horas, com as dores aumentando, o médico, minha sogra e meu marido resolveram que eu deveria ser levada para o outro lado do rio - para a cidade de Guayaramerin -,  na Bolívia, onde as condições de atendimento eram um pouco melhores, pois tinha um hospital de campanha que tinha ao menos sala de cirurgia.

 

O Dr. Gondin entregou-me ao Dr. Helmer Botsford que era diretor do Hospital que é Evangélico. Ele aplicou-me uma injeção para eu relaxar e disse que voltaria às 2 horas.

Eu já pesava 70 quilos. Já era dia 28 de fevereiro.

 

Resultado: O moleque pesou 4,5 kg. O parto com “ fórceps” e anestesia,  tampão de éter no nariz que resultou em uma congestão no fígado que me deu muito trabalho e dores.

 

Esse parto, quando eu estava com 18 anos,  trouxe-me o amadurecimento e como que me transformou na mulher forte e determinada que sou.

 

Em 1960, o presidente Jânio Quadros instituiu a “Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo” em alguns municípios.

 

Guajará, talvez por ser um município de fronteira, foi um dos escolhidos e as professoras Helena Ruiz e Albertina Coelho, eram as representantes na cidade. E como tal, foram autorizadas pelo MEC a contratar professores, porteiros e merendeiras. Fui a primeira chamada a lecionar na cidade por ter diploma da área, e a professora Corina Saldanha, designada para lecionar no alto Rio Guaporé. Após essa primeira providência, muitos professores leigos foram contratados para lecionar nos altos rios e linhas do Iata (Distrito de Guajará Mirim). Naquela época, estudavam crianças de 7 anos misturadas com jovens.

 

Fui localizada em uma sala cedida pela Associação Comercial. Na hora do lanche, levava os alunos pelas ruas para merendarem no Grupo Escolar Simon Bolívar (distante 2 quadras). Terminado o lanche, voltava-mos para a sala de aula.

 

Dessa época, recebi recentemente uma mensagem carinhosa do meu ex aluno Martinho Sidon, que me fez chegar às lágrimas.

 

No final de 1962, a CNEA encerrou suas atividades e todos os professores ficaram desempregados, inclusive eu. Foi quando o Diretor da Divisão de Educação do Território, professor Abnael Machado de Lima, foi `a minha casa e convidou-me para voltar a trabalhar, para ajudar o professor Herbert Alencar de Souza a instalar o Curso Ginasial Diurno, pois esse funcionava à noite no prédio do Grupo Escolar Simón Bolívar; em Guajará não tinha luz elétrica havia muitos anos, e muitos menores de 11 anos tinham passado no Exame de Admissão. As aulas eram dadas à Luz de Petromax, e as ruas totalmente às escuras, preocupavam os pais. O meu filho mais velho (aquele que nasceu na Bolívia), estava entre eles.

 

Eu receberia  Cz$10,00 por mês, mas o dinheiro só chegava de 6 em 6 meses. O diretor Herbert trouxe carteiras usadas de escolas da Capital e formamos 2 turmas; uma de Primeira e outra de Segunda Séries. Ele foi designado Diretor e eu Secretária. Com alguns móveis (mesas, estantes e cadeiras) cedidas por outros órgãos, ocupamos um prédio construído pelo governo há 11 anos, para escola, com um belo auditório,  e sem nunca ter sido usado.

 

Convidamos pessoas da cidade que tinham condição de dar aulas e o curso funcionou. Dom José Vieira de Lima, hoje Bispo, nos ajudou muito. Era psicólogo e tinha ótimo relacionamento com os jovens e os influenciava. Assim o Ginásio “Paulo Saldanha” teve casa. Mas não paramos aí, começamos a providenciar a instalação do Curso Pedagógico, para formar nossas primeiras professoras; contrariando a imprensa local que queria o Curso Científico.

 

No dia 11 de março de 1964, foram realizadas as primeiras aulas e nasceu o Colégio Normal “Paulo Saldanha”, continuação do ginásio, nome de um dos mais antigos pioneiros da cidade. Enquanto isso, eu lutava junto ao MEC pelo enquadramento dos professores da extinta CNEA, que continuavam desempregados, pois o Ministério, ao desativar a Campanha, enquadrou porteiros, merendeiras e zeladores, pois não tinha Quadro de Professores Primários. Eu escrevia cartas e petições ao Ministério, até que um funcionário, sem se identificar, pediu que eu mandasse os meus documentos urgente. Mandei imediatamente, e 9 anos depois, 1971 saiu o enquadramento de todos no mesmo nível que o meu. Foi uma festa por que muita gente passou necessidade. Dona Tereza Bento, antiga moradora e pioneira na cidade, que criava 2 netas já mocinhas, foi para a cachoeira quebrar pedras para vender. 

Alguns diretores passaram no Paulo Saldanha e eu sempre na secretaria; comprei um livro de danças folclóricas, e ajudada pelas professoras Tereza Chama (danças bolivianas), Maria Do Carmo, e Jeny Morhy ao piano, ensaiava essas danças. O professor  Salomão Silva era o caixa nos arraiais juninos que eram de 3 dias.

 

Ensinei e treinava a Banda Marcial, sem nunca ter tocado tambor. Para me distrair um pouco mais, criei a Escola de Samba Unidos de Guajará, com enredo “Bahia e seus Mistérios”, que fez sucesso.

 

Em 1969, com a professora Leni Bouez, fundamos uma escolinha particular em um prédio do meu sogro Omar Morhy, que não nos cobrava o aluguel do imóvel. O nome era Escola Moderna. Minha filha Lya Morhy fazia a recreação das crianças; e nela, lecionaram as alunas do Curso Normal, Aparecida Gondin, Sônia Montenegro, Pedrina Ewerton e algumas outras, como serviços prestados. Essa escola, que funcionava com a direção da professora Lenir, durou poucos anos. Foi criada a Escola de Aplicação no Paulo Saldanha para funcionar no turno da manhã, razão que me levou a fechar a Escola Moderna.

 

Em 1972, candidatei-me a Vereadora pela Arena (Aliança Renovadora Nacional). Fui eleita e reeleita 1976, sem remuneração, porque o município tinha menos de 100 mil habitantes. Na Câmara Municipal, meu primeiro projeto foi o de uma lavanderia para acomodar as lavadeiras que lavavam roupas nas pedras, com os pés dentro d'água.

 

Em 1978, no dia 7 de setembro, após o Paulo Saldanha ter recebido o troféu de primeiro lugar no desfile escolar, viajei para Governador Valadares gozando Licença Prêmio, para o nascimento do meu primeiro neto, Yuri Stanley Morhy de Novaes, nesse período, consegui minha transferência para Brasília em razão de problemas de saúde na família. Quando saiu a transferência, fui trabalhar na Delegacia do Ministério, no qual era delegado, o Dr. Luiz Henrique. Estimulada por colegas e amigos, fiz vestibular em Direito e me formei em  1983. Voltei a Guajará e renunciei ao mandato na Câmara Municipal.

 

Formada em Direito, fui convidada pelo desembargador Cézar Montenegro, que havia sido Juiz de Direito em Guajará, e que conhecia a mim e meu trabalho, para ser Consultora Jurídica na sua Presidência do Tribunal de Justiça, aceitei e voltei para Rondônia. Posteriormente fiz concurso na Primeira Turma da Procuradoria do Estado de Rondônia e passei em quinto lugar, tendo chegado à Procuradora Geral. Depois de aposentar-me, voltei para o Tribunal de Justiça com cargo comissionado, onde trabalhei por mais 11 anos, tendo exercido, além de consultora, os cargos de Secretária do Conselho da Magistratura e Diretora do Departamento Judiciário Cível.

 

A OAB de Rondônia me fez uma bela Homenagem quando completei 30 anos de advocacia. Essa foi minha vida em Guajará e Rondônia e não contei os detalhes, talvez mais interessantes que a história em si. Muito obrigada pela paciência de escutar uma história tão longa”.

 

Arigó
João Pessoa/PB-Jun/2022