De ovelhas, ou, carneirinhos
(Para minhas sobrinhas e filha muito amadas, Lavínia, Maria Esther, Flavia, e Laura: Sobre a avó de vocês, mãe de suas mães. Natal 2022 )
Nasceu menina, filha de imigrante originário del Veneto, Provincia di Padova, Comuni Padova. Era o ano de 1926, década onde ganhar a vida e estudar, já eram dificílimos para a classe trabalhadora. Contudo, ela teve que superar fome, inseguranças, e o fez com a disposição e fé impecáveis de toda uma vida.
Formou-se PROFESSORA, depois foi para a Delegacia de Ensino, como funcionária. Para a primeira função, ia de carroça, no poeiral da estrada que conduzia até o sítio onde ficava sua sala de aula; mesmo grávida de mim e com todos os enjoos (sic). Para a função burocrática, ia à pé, não sem antes ir à missa, preparar nossas refeições, limpar da casa tudo que era íntimo, de forma que ela já praticava com as mulheres que deixavam o próprio lar para cuidar do dela, a sororidade.
Fidelíssima à família e à religião católica, ela era, no entanto, alegre e festeira, e todos se beneficiavam das produções de sua cozinha mais que perfeita.
Naturalmente simples e justa, tornou-se também altiva, forjada certamente na convivência com a burguesia, a quem, aliás, conquistou por agir com dignidade, honestidade e gentileza, mesmo frente ao adverso. Sempre ia em frente, fechando os olhos para às arrogâncias e à desfaçatez.
Ao entardecer, por anos a fio, ia visitar a mãe adorada com as três Marias à tiracolo. E em cada anoitecer de cada um destes entardeceres, o papai ia nos buscar e dando suporte ao braço dela, retornavam conversando, ou o papai assobiando ou cantarolando como se nada mais existisse no mundo além de sua família, sagrada família. Nos domingos nos levava dançar em torno do coreto da praça no Jardim de Baixo, onde começou o romance deles dois.
Ela cuidava do próximo, melhor de qualquer necessitado(a), como se fossem seus familiares: algo difícil de se ter na classe média católica. Foi revolucionária.
Teve um marido apaixonado: por sua comida, por sua espiritualidade, pelas suas pernas. Todas as noites ao se deitarem, faziam um duo de rezas e, muitas, muitas conversas. Ele a chamava de “mãe” e somente se alimentava após ela servi-lo: o prato feito. O que ganhava, entregava nas mãos dela, então, ela era também economista e gerente. Uma vida assim, di-a-ri-a-men-te. Às vezes brigavam e por duas vezes tive que ir comprar e entregar flores à ela em nome dele. Mas, se a resistência dela não se dobrava, restava surpreende-la justamente quando distraída cozinhando, ele a tomava num arrebatado abraço pelas costas, abraço fortíssimo, à italiana. Todavia, a atmosfera era de Puccini, Pavarotti, etc, e da voz do papai, tenor solo de coral, e que não quebravam as taças porque não eram de cristal. De cristal eram eles!
Aos domingos, futebol, pipoca, a provocação entre eles, o Palmeiras (antes Palestra) dele, e dela, o Santos do Pelé. Que divertido assistir papai e meu irmão torcendo: um show da melhor comédia! Mas antes que o Walter Filho estivesse presente, me sentava numa cadeirinha de madeira, confeccionada pelo vô Antonio , bem ao lado do meu pai. E ficava encantada com a emoção dele, e perguntava sem parar para ele: “o que é pênalti?”, “e escanteio?” e ele explicava com enorme paciência até que dizia ”agora fica quietinha para vermos o jogo.” Minha mãe só corria pra ver a repetição dos gols, porque da cozinha não saia nunca, mas ele gritava GoLLLLLLLL e chamava Mãeeeee, e ela adentrava feito um furacão na sala e vinha pro gol!
A mamãe cuidou das filhas e filho em momentos bem especificamente duros como uma aliada devotada, compromissada, quase uma psicóloga. E, porque nasceu ou se tornou incansável, ademais de dois infartos do “cuore”, cuidou de vocês também!
E depois disso tudo, de uma vida tão fecunda, distinta, amantíssima avó, recebeu das netas, por conta de seus cabelinhos brancos e macios de lã, um apelido! Um apelido celebrado por algumas delas com uma tatuagem na pele.
Este apelido é “CARNEIRINHO” e elas mesmas celebram sem cessar a memória dessa avó. Essa dedicação delas à essa memória, me contagiou neste Natal de 2022, e sei que ela desejava que permanecêssemos unidas, e hoje estamos! Vai que ela está lá em cima como acreditava, tenho certeza que está feliz: o amor combina com a gente, de agora para todo o sempre.
(Ao entregar o texto a cada uma das netas presentes, lhes dei também, ovelhinhas branquinhas com pelinhos de lã felpada, simplesmente divinas, feitas pela artesã Maria Tereza Cravo Panichi, do Rio Grande do Sul).