A LOUCURA, QUE NÃO ERA DE VINCENT
Começo este texto assumindo que seria uma espécie de heresia dissertar sobre Van Gogh, se não me redimisse o encantamento de uma admiradora e fã tardia, levada por estranhas sincronicidades, que qualifico transcendentais, de encontro à história de sua vida e sua arte, que, como em nenhum outro artista até onde sei, se emaranharam desta forma em um só evento indistinto.
Isso porque a vida de Vincent Van Gogh é a amálgama mais homogênea de sentimentos com arte - fenômeno encantador de identidade artística que só acha paralelo, da minha ótica, na história de Rachid Taha, saudoso músico argelino a quem já rendi minha amorosa homenagem em crônica anterior.
Provável que também justifique a minha entusiasmada exaltação o fato de, sendo escritora, possuir eu mesma o histórico familiar importante de toda uma família composta por artistas mais ou menos anônimos, começando pelas lindas pinturas autodidatas de minha saudosa avó materna, dom herdado por minha mãe e tias, passando pela formação em Belas Artes de meu pai, primos atores, e vários de nós como músicos de vocação espontânea, tanto para o canto quanto para a execução instrumental.
Dito isso, expresso o pesar pela consciência clara de que no espaço exíguo de uma crônica nunca será possível a homenagem íntegra de coração que eu desejaria expressar a Van Gogh, o que só cabe com justiça nos estudos sérios da atualidade sobre o conjunto de sua obra; nas múltiplas biografias respeitáveis, como a que venho estudando, da autoria de Steven Naifeh e Gregory White Smith, e em pelo menos mais três que constam da minha fila de leituras, incluindo suas Cartas a Theo - de soma a mais de um filme emocionante sobre a sua curta, mas estelar, trajetória de vida, e o icônico Museu Van Gogh em Amsterdam e sua Fundação Van Gogh.
De lamentar, como reza o mito, porém, que o reconhecimento devido à sua genialidade artística tenha acontecido apenas após a sua morte, sob os empenhos louváveis de sua cunhada - e não quando a sua alma atormentada ainda permanecia, sedenta de compreensão, nos tempos e lugares áridos de empatia e de calor humano onde viveu. Estranho e mórbido fenômeno social comum, replicado nas trajetórias de vida de praticamente todos os gênios artísticos de todas as vertentes na história humana.
Com o enaltecimento indispensável, apesar de todas as divergências existentes entre ambos, ao seu irmão Theo, pilar financeiro fundamental para que, apesar de toda a situação de penúria e indigência social por que Van Gogh passou - agravada pelos rompantes de seu gênio e de sua personalidade forte - ele não visse ruir de vez num abismo irreversível a acidentada carreira artística encharcada de dramas e de sofrimentos que teve que vivenciar, numa Europa Vitoriana com conceitos rígidos do que vinha a ser a arte, e que apenas de forma sacrificial e parcimoniosa cedia espaço, mesmo às novidades expoentes de vultos da pintura como Monet e Renoir (quase tão achincalalhados no início como foi Van Gogh, diante dos representantes ortodoxos da Era de Ouro ou da Escola de Haia, no domínio das exposições e do mercado de pinturas daquele século).
Mas, na intenção de não me estender demais sobre um tema melindroso cujas nuances intrincadas de época não domino, quero me ater, no escopo desta homenagem singela, na proposição do título deste texto: na alegação da 'loucura, que não era de Vincent Van Gogh'! Ao menos da minha percepção.
Não, amigos leitores! Sentimentos e sensibilidade extremos na forma de se enxergar a vida, o mundo, as pessoas, não são, nunca foram, e inch'Allah jamais serão loucura - a menos que para as mentes e intelectos céticos, ressequidos e engessados nos clichês sobre o que são a vida e a Arte, em todos os tempos!
E, textualmente, mais de uma vez Van Gogh afirmava pintar o que sentia - não o que via!
Daí a sua encantadora 'Noite Estrelada' exibir aquela profusão de luz e movimentos em todos os tons das cores do sol, das estrelas, e dos céus noturnos! Daí a sua obsessão na simbiose inexplicável para as mentes da época, do que pintava com o que entendia do que pintava - não nos detalhes realistas do cenário ou das figuras em que trabalhava, exigidos com rigor, desdém, ou impiedosa ironia pelos críticos de suas telas!
Às págs. 364 da biografia de Naifeh e White é comentado, textualmente:
"Por meses, até por anos, ele tentara de todas as maneiras obrigar a realidade a se adaptar ao mundo sentimental e cheio de clichês que havia dentro de suas pastas (...) o atrito resultante desse esforço gerara apenas calor: reações acesas com os colegas artistas, os mentores, os pais, o irmão. "
Clichês?!
Respondam-me com honestidade se ainda nos dias de hoje não seguem ou terminam a vida solitários, ou quase solitários, estigmatizados, excluídos, marginalizados em seus meios sociais, todos aqueles que se recusam a adulterar, aviltar, deturpar a sua identidade, essência ou integridade humana, ou artística, ao sabor das exigências irredutíveis do estabilishment no seu eterno afã mercantilista de converter tudo e todos em algo rentável ou vendável?! Num 'moto perpétuo' de coisificação da vida humana?
Onde, portanto, reside o real clichê? No íntimo de um pintor que expressa em sua obra 'Sofrimento' a rejeição a esta mesma coisificação humana, no nu de uma prostituta grávida inclinada com o rosto oculto nos braços cruzados sobre os joelhos - ou na sociedade excludente que, desde aqueles tempos à mingua da capacidade de compaixão, primeiro o esfolou vivo por não se enquadrar nos estereótipos sociais e culturais dos artistas e donos de galerias do século XIX; e depois, e de novo por ter ele, no seu estado de isolamento e solidão existencial extrema, se compadecido da história de vida daquela mulher que lhe servira de modelo vivo, e a respeito de quem sonhou, por algum tempo, com uma história familiar que - quem sabe?! - serviria de redenção e remanso de paz para ela, quanto para ele mesmo?!
Pois afirmo com convicção que Vincent, já em seus dias de abandono e penúria de entendimento humano, era esse homem de gênio multidimensional, inclusivo, abrangente, tão reivindicado nos dias de hoje para um movimento de expansão de consciência que dê soluções definitivas a problemas milenares que nunca encontrarão seu término na caduca percepção mecanicista que há séculos arrasta a humanidade às tragédias, e a um irreversível estado de indigência espiritual!
Onde, portanto, a "loucura"?!
Vincent Van Gogh pintava a essência orgânica de uma existência em eterna mutação e movimento - incluindo em suas obras tudo, desde ele mesmo aos circunstantes, às paisagens e cenários em todas as suas cores, luzes, sombras, ventos, sentimentos, movimentos ocultos ou revelados! E, tão só por esta razão, ele era livre de se enquadrar em qualquer clichê!
Dizia querer que suas pinturas 'comovessem quem as observasse!'
Vincent, portanto, foi o único artista, ouso repetir, a conseguir pintar e retratar a amálgama vida - sentimentos; tais como são e acontecem em essência, não como as vemos!
Pagou, em virtude disso, o preço elevadíssimo de ser quase diagnosticado como louco; de ser execrado por seus contemporâneos e pela própria família. E este legado impiedoso de incompreensão quase absoluta por uma alma assim, atormentada quanto hipersensivel, impôs a um homem à frente de seu tempo a história turbulenta de vida que desaguou na sua morte prematura, aos trinta e sete anos. Deixando à posteridade o monumento artístico prodigioso que somente depois, e até hoje, o consagra como um dos maiores gênios da pintura ao redor deste mundo.
Mas eu sei que também assim ele é, em outros....
Quanto ao episódio da orelha... ora... quem nunca chutou uma cadeira em momentos de raiva louca, não queimou a mão, não socou uma porta ou rasgou uma ou duas notas de dois reais?!
Sim, artista! Você conseguiu!
Suas obras (e você!) nos comovem, querido Vincent!
Van Gogh
1853 / 1890
Bibliografia útil:
Van Gogh - a Vida
Steven Naifeh / Gregory White Smith
Companhia das Letras
Vincent
Barbara Stock
L&PM Editores
Van Gogh
Obra Completa de Pintura
Taschen
Biblioteca Universalis