Breves palavras sobre José Saramago
Publicado na página @artereflexo, no Instagram:
Começo esse texto sobre o escritor português José Saramago apontando uma injustiça: sua fama equivocada de “não usar pontuação”, quando na verdade ele usa, é claro. É como dizem: é preciso conhecer as regras para poder quebrá-las. Não que ele seja um fora-da-lei ortográfico, mas digamos que há duas ou três regras que ele mesmo criou, e quando se percebe o padrão, a leitura flui. Exemplo: é delicioso ler um longo diálogo com falas separadas por vírgulas e maiúsculas, em linhas contínuas que conduzem como um rio por frases reflexivas, onde os interlocutores duelam com suas verdades pessoais, boas ou ruins, puramente humanas.
Saramago (1922-2010) é um dos representantes mais importantes da literatura portuguesa, único ganhador do Nobel de Literatura neste idioma, em 1998. “Ensaio sobre a cegueira” talvez seja seu livro mais conhecido. Ateu convicto, escreveu outros como “O evangelho segundo Jesus Cristo” e “Caim”, mais polêmicos por serem exemplos de seu olhar entristecido sobre como o homem criou o deus cristão à sua imagem e semelhança. “A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele” (Caim).
Outra peculiaridade são os acontecimentos inusitados, como um pedaço de continente que se solta e flutua no mar (A jangada de pedra), um homem que descobre outro idêntico a si (O homem duplicado), ou um lugar onde ninguém mais morre (As intermitências da morte). Mas o que importa não é a explicação, e sim como as pessoas lidam com isso. Essa é uma das grandes riquezas de sua obra: uma dissecação sincera e elegante do que nos compõe. Como dito no “Evangelho”: “Cada um de nós é este pouco e este muito, esta bondade e esta maldade, esta paz e esta guerra, revolta e mansidão”, ou ainda, em “A viagem do elefante: “A representação mais exata, mais precisa, da alma humana, é o labirinto. Com ela tudo é possível.” Ler Saramago é isso: um passeio pelos corredores que nos unem como humanidade, às vezes angustiados em suas passagens mais pesadas, outras, esperançosos, porque a esperança também é um de nossos instintos.