CRIME SEM CASTIGO

Muitas flores para a Dona Zefa, a “porteira alcoviteira”.

Na terra do mar, vivíamos numa espécie de condomínio fechado, não sei se na altura já existia o conceito. Para aceder havia duas entradas, a da traseira, caso quiséssemos apanhar o autocarro, a principal que dava acesso à praia. Era dividido por dois pátios. No inferior, uma família ocupava um casarão de dois andares. Subiam-se umas escadas, do lado esquerdo ficava a casa da porteira e em frente a nossa casa, o piso inferior de mais dois andares, cujos proprietários só usavam nas férias.

As regras em casa eram muito rigorosas. Nada de saídas, horários rígidos para as refeições, para levantar e deitar. A sorte é que podíamos respirar. Contestar ou reivindicar, estava fora de questão, vestir preto integral também. A palavra de ordem era estudar. O boletim das notas e das faltas escolares, iam para casa. Uma tragédia. As cartas dos namorados também. Outra tragédia. Eram confiscadas, mas não impediam o castigo, apesar de nem sabermos o remetente, nem o conteúdo.

A porta da casa da porteira, tinha um postigo de vidro. Tinha uma cortina que mantinha permanentemente uma nesga aberta, para ela cuscar quem acedia ao portão da traseira (o tal do autocarro). Era ela quem recebia a correspondência e distribuía pelos demais condóminos.

Eu tinha o hábito de “fugir” pela janela, principalmente às sextas-feiras. O regresso a casa era sempre de uma ansiedade enorme, será que deram pela minha falta, será que coincidirá a minha entrada com a saída de alguém. Imaginava sempre um pelotão armado, pronto a disparar, caso fosse apanhada. E um dia fui. Sapatos na mão, respiração em suspenso, a empurrar a janela devagarinho, quando ouço um restolhar mais abafado que o barulho que eventualmente eu pudesse fazer. Em pânico, olho em direção ao barulho e vejo a porteira, quase estátua, como se também ela não quisesse estar ali. Leva o indicador ao nariz, em sinal de silencio, e agita freneticamente a mão livre, como se dissesse vai, vai…, e eu fui.

Não preguei olho a noite toda. Tinha a porteira como alcoviteira e não duvidava que seria denunciada.

Mas não fui. Tencionava pedir-lhe que não dissesse nada lá em casa. Não foi preciso. Logo pela manhã, estava eu a pôr a trela ao Dark, o nosso cão, ela veio ter comigo e disse em sussurro, enquanto simulava que afagava o cão: eu não vi nada ontem à noite. Acho que interpretou o meu suspiro de alívio como um profundo agradecimento.

E muito mais ficou por agradecer. Passou a entregar-me o boletim das faltas, e as cartas dos namorados. O boletim das notas, que até nem eram más, entregava “às tropas”, para não dar que desconfiar.

Ficou por agradecer, o ter-me ensinado que os adultos não são só castigadores, podem ser amigos e cúmplices. Ela só pedia, nunca me falhes. E nunca lhe falhei. Umas horas de convívio, com os amigos, à noite, a tocar viola, a cantar, a dizer disparates e a rir muito, não é falhar. E ela sabia.

Ficou por agradecer o cuidado de esperar sempre por mim, a nesga da cortina só descaia quando eu, já do lado de dentro da janela, lhe acenava e ela sabia que era com o coração…

Paula de Eloy
Enviado por Paula de Eloy em 16/03/2021
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