PARA LEMBRAR DE QUEM SE FOI
Nós que ficamos ainda nesta brecha de vida, emparelhando as bordas dos caminhos recortados em dificuldades, nós que provamos ainda este cálice de amarga bebida de estar vivos e ir em frente, hoje lembramos dos mortos. Um dia para lembrar. E comprando as flores hoje à tarde, eu me senti longe da minha pele, como se outra fora, alguém de um antigo filme que me emocionou, uma mulher estranha, naquela floricultura comprando flores para um morto estranho, pois que esse não é aquele com quem vivi tantos anos. Este é um morto, um corpo desfeito lá naquele chão. O meu "morto" estava radiante, estava até belo, e eu nunca na verdade, eu nunca o vi morrer...
( o texto abaixo foi publicado em 11 de setembro e torno a trazê-lo para cumprir o ritual da despedida )
Vejo tuas belas mãos cruzadas sobre o peito
como pássaros recém tombados,
ainda intacta e estranhamente viva
a bela plumagem!
Tal Guevara naquela fotografia,
apenas fechados os olhos,
beleza moura de España
nas negras sobrancelhas...
Estás tão belo neste momento,
nenhuma sombra paira sobre tua imagem!
E quando te abraço pela derradeira vez,
ainda meu, em nossa cama,
tão mais junto estás
e tão mais vivo, mais resplandescente
nesta morte de todo digna, sem cortes,
sem cicatrizes.
E cresces em tal finitude
com o corpo ainda quente,
e assim pairas pra sempre em minha memória:
inteiro, exato, matéria viajante,
passageiro que não leva sequer o corpo,
pássaro errante e livre,
em recém nascida condição.