Clamor das Águas
Por Nemilson Vieira (*)
01 - No início do mundo, o Divino movia-se sobre a minha face. Sou obra-prima, presente do Criador.
02 - Um líquido mais que precioso. No meu ciclo natural, numa condição propícia, favoreço e mantenho a vida; a harmonia e um bem estar sem igual, entre os viventes.
03 - Vivo no campo e na cidade. Sou rios, lagos, mares. Estou nas pessoas em mais de 60% por cento...
04 - Acondicionam-me em reservatórios, piscinas, tanques, torneiras, filtros, potes... Transponho obstáculos.
05 - Tudo, neste planeta interage comigo. Sou tão pequena que me vejo inserida numa molécula e tão grande, que sou vista do espaço sideral.
06 - Na Terra, sou infinitamente mais importante do que a prata, o ouro, o diamante, as pedras preciosas juntas, as riquezas das nações...
07 - Sou cíclica: caio do céu para vós; broto da terra, em fontes termais, ou não; evaporo, subo para as nuvens, e desço De lá. Dos olhos também, em forma de lágrimas: alegres, sentidas.
08 - Ponho-me a correr por todos os lugares como deve ser a justiça.
09 - O Pai Criador outorgou-me a sublime missão de servir ao mundo. O assessoro na Obra da Criação nas suas mais variadas utilidades; à vida inteira.
10 - Uma das ocasiões bastante marcante no meu percurso existencial, se deu ao me dividir em duas partes para dar passagem ao povo de Deus, que vivia sobe a escravidão de Faraó, no Egito, e consumi o seu exército.
Outra fora por ocasião do batismo do maior homem do mundo, Jesus de Nazaré, o Salvador da humanidade.
11 - Nunca me neguei ao serviço da limpeza da vossa casa, do vosso carro, do vosso corpo.
Sempre disponível, dou refrigério a quem me procura, deseja; do micro ao macro organismo.
Jamais deixei de servi-lo; os higienizo e ponho o alimento na mesa de cada um de vós.
Precipito sobre os bons e os maus. Como o meu Feitor: não faço acepção de pessoas.
12 - Não haverás indústrias, trabalhos, trabalhadores, bens de consumo, progresso... Sem a minha participação.
13 - Quem mais me consome é a agricultura. Os seus gestores, usam e abusam da minha boa vontade.
Adicionam veneno ao meu corpo, ao plantio, aos consumidores.
14 - Sou eu quem gero a vida no tempo certo; sem a minha presença, ainda que nasçam não se sustentam...
Sem mim a soja enferruja, o arroz torce a palha, o milho não dá espigas... Nada vai adiante. O homem, aborrecido de fome... Morre nas suas intrigas, se não houver fartura de pão.
15 - Como promotora da vida, uma vez contaminada, morrerei. Torno-me num veneno letal...
16 - Há muito, apresento sinais doentios; estou a perder lentamente as forças, a saúde, a vida. – Há necroses em muitas partes do meu corpo; mundo afora.
17 - Morro a cada instante, um pouco, e a minha situação só piora a cada dia. – Falta-me o tão necessário oxigênio, que vocês usam para respirar e viver.
18 - No Tietê, São Paulo, já me consideram como uma das mais sujas do planeta.
19 - Caso ainda haja humanidade...
Peço socorro! - Com urgência. Para quê, a minha morte generalizada e anunciada, não aconteça. O meu estado de saúde é
bastante crítico!
20 - Temo não sair com vida da situação que me encontro para contar a história. Estou a depender das consciências... Não quero morrer e levá-los comigo; seria isso interessante?
21 - Peço pelo tudo de bom que fiz e ainda faço a todos vós – cabeças pensantes –, o “RESPEITO”.
22 - Há por toda parte, um clamor por JUSTIÇA, ao meu respeito; das pessoas de bem... Pouco se faz.
23 - Ainda preciso dar assistência a um contingente enorme de outros seres viventes, que ainda virão ao mundo. - A vida precisa continuar para outras gerações também: de homens e de bichos.
24 - Pela minha posição na hierarquia dos elementos da natureza, eu precisaria ser mais compreendida, amada, reverenciada, defendida com unhas e dentes...
25 - Falta reflexões contínuas quanto a qualidade do nosso relacionamento. Perdemos muita afinidade, reciprocidade...
26 - Será que estou a pedir demais, a querer um tratamento mais digno, justo, humano?
27 - Lembrem-se da “lei da semeadura e da colheita” e não se lamentem, se algo der errado, por não observarem esse princípio.
28 - Vejam as agressões que sofro, nos corpos d’água; bacias hidrográficas. Nascentes, afluentes... Rios principais... Mares.
29 - Somente o homem maltrata-me dessa maneira. Cospem no prato que comem; ao me poluírem...
30 - Há abundância de mim nas vossas composições corpóreas. Estou nos vasos, artérias e capilares; componho e conduzo o oxigênio e outras substâncias, para a nutrição das células.
31 - Até na vossa medicação me faço presente... Se doentes na vida adulta ou bebês, eu estava e estou, no medicamento farmacológico, no chá da criança, no unguento dos adultos.
32 - Se sedentos, nunca vos neguei um gole do meu precioso líquido; nem o pescado para o pirão de cada dia, ao lançarem as vossas redes e anzóis em meu corpo...
33 - Lembram-se da “multiplicação dos pães, por Cristo”? Pois bem, o complemento do milagre eram peixinhos, que cuidei com muito amor, para aquele momento especial.
34 - Devidas as suas atitudes irresponsáveis, recebo uma carga diária de poluentes in natura – todos os dias; das mais variadas origens.
35 - Muitos, não mais me contemplam, banham-se ou pescam. Onde sou CARTÃO POSTAL, há placas às minhas margens, com os dizeres: “É proibido pescar. Peixes impróprios para o consumo.”
36 - Sou mais bonita nas fotos; quem aproxima-se de mim sente um odor horrível!
37 - Multiplicaram-se desordenadamente, como areias do mar e tem-me como culpada de seus problemas, infortúnios; nos períodos chuvosos. - Ao cair do céu sem dó e ocasionar as enchentes, os desmoronamentos, as perdas e mortes...
38 - Aí me maldizem, recorrem a São Pedro – para dar um jeito nas situações calamitosas que surgem nessas épocas do ano. Pedem a ele para fechar as torneiras.
39 - Nas cidades grandes, sigo a andar como “Rios Invisíveis”, em várias partes. Gestores sem noção do que fazer... Em vez duma restauração, canalizam-me; jogam os problemas para os moradores das jusantes.
40 - Destroem as matas ciliares, junto do meu leito, e minha clara visão do mundo exterior esvaem-se. Elas são os cílios, a proteção dos meus olhos.
41 - Fui isolada dos elementos da natureza: como à luz, o ar, o solo... Nessas canalizações.
42 - Não posso mais respirar, nem me infiltrar no solo, recarregar os aquíferos subterrâneos, como antes.
43 - Veículos vivem sobre a minha cabeça, nas avenidas barulhentas. Não levo mais o lazer a população, não mato a cede dos animais; por causa da minha pouca saúde.
44 - Lamentável situação...
Não levo mais a alegria aos meninos nos seus longos banhos, nos poções, ou em piscinas naturais. Porque não fizeram nenhum sacrifício para salvar-me.
45 - Tenho saudade dos bons tempos em que eu era mais pura, transparente como um cristal!
Não tinha cor, odor, paladar; para agradar a todos os gostos. Agradava a “gregos e troianos”. Hoje, o mau cheiro que exala do meu corpo, não dá mais para agradar tanto.
46 - Estou locomovendo-me com certa dificuldade, nos espaços rurais e urbanos, devido ao assoreamento... Não deixo de seguir para o mar, meu destino.
47 - Sem fazer agrados aos banhistas locais, turistas, que antes apreciavam-me... Não alavanco a economia das cidades, dos países, como devia.
48 - Será que o meu maior pecado foi mesmo, o de viver a vida inteira a fazer o bem, será?
*Nemilson Vieira
Acadêmico Literário.