Vladimir Herzog - 32 Anos de Sua Morte - Ainda Presente Entre Nós

Há exatos 32 anos, morria, sob a tortura do regime militar, um dos maiores jornalistas que esse país já viu: Vlado Herzog, mais conhecido por Vladimir.

Vladimir Herzog, um Iugoslavo de nascimento, de família judia que fugira do nazismo que varreu a Europa sob os avanços do III Reich de Hitler, naturalizara-se brasileiro em sua nova pátria.

Graduado em filosofia pela USP, Vlado Inicia no ofício de jornalista no Jornal “O Estado de São Paulo”.

Em 1964, após o golpe militar, Vlado acaba, mais uma vez, fugindo do terror de uma ditadura sangrenta, exilando-se na Inglaterra, onde veio a trabalhar na BBC, obtendo enorme experiência e aprimorando o seu currículo, o que viria a ter grande importância em seu futuro.

Em 1968, Vlado retorna ao Brasil, com sua esposa Clarice, ela alguns meses antes. Em seu retorno, Vlado se depara com uma situação ainda mais difícil do que aquela em que ele deixara o país, pois a poucas semanas havia sido decretado o famigerado AI-5.

Herzog era um jornalista extremamente ligado aos meios culturais, sobretudo o cinema, sempre imprimindo nessa sua militância, inclusive profissional, uma forte e marcante preocupação social, o que já chamava a atenção de muitos.

Tal opção ideológica fizera com que Herzog acabasse por tomar o único caminho possível a um Homem de “alma” comunista em uma mente profundamente intelectualizada: em 1971 ingressa nas fileiras do Partido Comunista Brasileiro – PCB.

Sua opção pelo comunismo fora uma opção feita com a alma de um sonhador, com a alma de um sentimento humano acima de tudo, que o levava, apesar de não muito ligado à atuação política, a lutar em defesa dos mais fracos, a lutar contra a ditadura.

E foi seu ingresso nas fileiras do PCB o marco de uma nova vida sob uma dura e cruel perseguição.

Em 1975, Herzog é convidado a dirigir o departamento de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, onde acaba imprimindo um padrão de jornalismo considerado indesejável pelos militares.

Sob a direção de Herzog, o jornalismo da TV Cultura passa a ter um padrão de independência e de insubordinação em relação às mentiras contadas pelo regime fardado. Jornalistas passam a ter liberdade para o exercício de sua atividade e inicia-se um processo novo, de autonomia e liberdade de expressão.

Não demorou, evidente, para a censura mostrar suas garras e partir para o ataque sobre esse homem que desafiava as baionetas com sua pena.

Além de sua postura frente ao jornalismo da TC Cultura, Vlado se encontrava em um dos momentos de maior repressão dos militares contra o PCB.

Foi o tempo de assassinatos de dirigentes e militantes em todo o país, o tempo dos desaparecidos, o tempo de operações coordenadas com apoio estadunidense e de outras ditaduras do continente, tudo com o objetivo de desmantelar a maior organização política de enfrentamento ao regime no país, logo após a grande vitória do MDB nas urnas, onde os comunistas tinham sua atuação eleitoral.

E foi no bojo dessa forte repressão aos comunistas, aliado a postura de repressão ao padrão de jornalismo com preocupação social que Vlado imprimia em seu trabalho a frente do jornalismo da Cultura, que se deu a ação dos homens do regime.

Naquele 24 de outubro de 1975, os dois agentes do DOI-CODI dirigiram-se à TV Cultura com a missão de levar Herzog para “prestar depoimento”. Herzog até dispunha-se a ir, pois não costumava demonstrar medo ou intimidação em qualquer situação que fosse. Mas foram seus colegas e amigos, que ao longo daqueles meses sob o seu comando, aprenderam a admirá-lo e a respeita-lo por sua personalidade e seu caráter extremamente humano e determinado, que opuseram-se, temendo pelo pior.

Durante todo aquele dia 24, eram muitas as informações e os boatos que circulavam pelos bastidores da Cultura a respeito de possível ação das forças de repressão contra Vlado. E muito era o temor de todos quanto a segurança do chefe e companheiro.

O jornalista Paulo Markun, que já naqueles tempos trabalhava na Cultura, junto com Vlado, foi um dos jornalistas ligados a Herzog preso antes de Vlado e veio a contar do clima reinante naquele dia, do qual soube logo após ser solto.

E assim, colegas e amigos conseguiram, após muita negociação, que os agentes não levassem Herzog já naquele momento ao DOI-CODI, com a garantia de que Vlado se apresentasse espontaneamente na manhã seguinte para prestar seu depoimento.

Não eram poucos os que queriam que Vlado fugisse, que procuravam meios e planos para garantir-lhe a fuga. Mas aquele homem habituado às atitudes de coragem e a atuação pública não tinha em sua personalidade, o perfil do fugitivo. E Herzog permanecera ali, em seu trabalho, até o fim do dia, mantendo o compromisso de honrar sua palavra e comparecer para seu depoimento na manhã seguinte. E assim foi.

Na manhã do dia 25, Vlado despede-se de sua esposa, Clarice e de seus dois filhos, encaminhando-se ao DOI-CODI.

Vlado, nos porões do regime, sob as mãos de seus carrascos, foi espancado, asfixiado, submetido a choques elétricos à exaustão, até vir a perecer, tendo sua morte por asfixia, não se sabe se em decorrência da falta de controle sobre seu organismo provocada pelos choques, ou se em razão das técnicas de asfixia empregadas por seus torturadores.

Morreu Herzog, sem delatar nenhum de seus camaradas do PCB, também sem delatar nenhum de seus companheiros de jornalismo. Aquele foi o único momento em que se viu calar a voz do jornalista e militante inconformado com a ditadura fascista instalada no país, justamente quando a ditadura queria vê-lo falar.

Foram dez horas de tortura, dor, humilhação e sofrimento, muito acima do que um ser humano comum é capaz de suportar. Mas Herzog não era um ser humano comum. Herzog era um daqueles que Brecht classificava como “imprescindíveis”. E levou sua luta até o fim de sua belíssima vida.

E naquele 25 de outubro de 1975, mataram o pai zeloso, mataram o marido apaixonado, mataram o jornalista cheio de princípios, mataram o sonhador, mataram o homem. Mas não foram capazes de matar os sonhos e a história. E foi assim que Herzog escreveu sua última e derradeira matéria, a maior de todas, em primeira mão.

A morte de Herzog não foi uma morte qualquer, mais uma, dentre as tantas ocorridas nos porões da ditadura. E nem com toda a encenação feita, em que tentaram, ridiculamente, alegar que Vlado havia suicidado-se enforcando-se com um cinto, com as pernas dobradas quase sentado, foi capaz de calar as vozes que se ergueram contra a sua morte.

O assassinato de Vlado pelo regime provocou a maior onda de protestos em todo o Brasil e em todo o mundo, exigindo o respeito aos direitos humanos, a liberdade de expressão aos jornalistas e ao povo, exigindo democracia.

O seu próprio enterro já fora um verdadeiro ato de protesto. Judeu, Vlado deveria ser enterrado de forma própria, como suicida, em se acreditando na ridícula versão oficial sobre sua morte. Mas com todas as evidências e provas de que fora assassinado, Vlado foi enterrado dentro dos mais rigorosos preceitos judaicos, como uma vítima que morrera pelas mãos de seus carrascos.

E o culto ecumênico de 30 de outubro, na Catedral da Sé, em homenagem a Vlado, foi o verdadeiro início da forçada abertura política no Brasil.

Aproximadamente 8 mil pessoas, entre camaradas, familiares, amigos, colegas e companheiros, além de populares indignados com a brutalidade do regime, estavam presentes, dentro e fora da Catedral. Em volta, quase 500 policiais fortemente armados, tinham ordens de disparar para matar, diante da menor manifestação contra o regime. E aquele foi um grande protesto silencioso, com um golpe contra o regime ainda maior do que poderiam ser os gritos de um milhão de pessoas.

A partir desse ato silencioso, Herzog, apesar de morto, continuava escrevendo a matéria da história da derrota da ditadura em nosso país. E a pressão, interna e externa, contra a ditadura, crescia dia após dia, com a exigência de todos por uma apuração real da morte do jornalista e pelo respeito aos direitos humanos em nosso país.

E foi em 1976 que Herzog, com a ajuda de sua esposa, Clarice, escreve um dos mais fortes parágrafos de sua derradeira matéria. Nesse ano, Clarice ingressa com uma ação pedindo a responsabilização da União pela prisão, tortura e morte de Herzog. E em 1978, o juiz Marcio José de Moraes, nome que deve ser destacado por sua coragem, sentenciou, atribuindo a responsabilidade pela prisão, pela tortura e pelo assassinato à União.

Tal corajosa sentença estarreceu o regime e devolveu esperança ao povo, permitindo que toda aquela movimentação e indignação cuja manifestação começara com a morte de Vlado, viesse a reorganizar-se de forma decisiva em todo o país e mundo afora.

Não são poucos os “reescritores” da história que buscam atribuir a tantas outras manifestações em nosso país, a responsabilidade pela pressão irresistível ao regime, que ocasionara a abertura política. Mas ninguém, diante da realidade colocada sobre a mesa, nega que fora Herzog, sua luta, seus camaradas e seus companheiros, que escreveram, e continuam escrevendo, essa matéria em primeira mão, da nova história do Brasil.

Foi a partir dessa tragédia, pela própria tragédia, que o país entra em ebulição, apesar da apatia sistemática de muitos movimentos populares que haviam passado a focar sua atuação em questões meramente intestinas.

Audálio Dantas cita, em seu depoimento ao Museu da Pessoa, que “só sindicatos de jornalistas se solidarizaram com o dos jornalistas de São Paulo. Lula era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e manteve-se à margem dos protestos realizados em outubro de 1975.”, demonstrando de forma cabal que fora aquela movimentação a decisiva para a derradeira pressão contra a ditadura, não outras vindouras. E como cita artigo do Observatório da Imprensa, “Isso não é dito para fazer uma cobrança sem sentido, apenas para mostrar como o movimento operário e sindical estava recuado e como aqueles protestos, que não brotaram por geração espontânea, abriram caminho para grandes lutas que viriam depois. Inclusive as importantíssimas greves do ABC paulista dirigidas por Lula.”.

E assim Herzog continuou atuando, mesmo após sua morte, como jornalista, escrevendo a matéria da história do Brasil, em primeira mão, como um bom jornalista; como militante comunista, sendo a face da luta que tornou inevitável a abertura política; como sonhador, que deu contribuição inquestionável, para que hoje pudéssemos gozar da liberdade com que ele tanto sonhara.

E o último parágrafo de sua derradeira matéria, ainda resta por ser escrita, com a abertura dos arquivos da ditadura, com a revelação do paradeiro de inúmeros camaradas de Herzog, até hoje desaparecidos, com a revelação das atrocidades inúmeras, cometidas contra a espécie humana.

E hoje, Herzog, 37 anos de saudades, continua mais vivo do que nunca, escrevendo nossa história, revelando nosso passado, construindo nosso futuro.

Matam os homens, mas os sonhos e as lutas jamais poderão ser atingidos. E Herzog, com sua vida, sua luta, seus sonhos, sua morte, nos mostra o caminho.

Em nossos corações e mentes, eternamente como inspiração e exemplo. Em nosso futuro, sua pena estará a escrever suas novas velhas letras.

Sua luta continua viva, seus camaradas continuam em pé, seus sonhos permanecem entre nós.

Camarada Vlado, ontem, hoje e eternamente, presente!

Jefferson Andrade
Enviado por Jefferson Andrade em 25/10/2007
Código do texto: T709815
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