O PESO DA CRUZ QUE MEU PAI CARREGA

Estamos em 1987 e estou servindo a pátria, irei tentando me adaptar com esse regime que para mim vai de encontro a meus princípios, ainda bem que será só um ano, sendo assim vou sobrevivendo as vezes bêbado as vezes equilibrista.

Neste mesmo ano, um de meus irmãos o terceiro a chegar na família, terá que fazer uma viagem para o rio de janeiro com o nosso pai lhe acompanhando, o motivo não será turismo ou passeio, mas sim o tratamento de um câncer revelado quase sem exames, e que teria por pouco, ou por falta de tempo e espaço, levado seu Valdemar as vias de fato com o médico que diagnosticou a doença, acredito que pelo trauma de ter perdido sua companheira pela mesma doença e a menos de um ano.

Aquela viagem de avião, de meu pai e meu irmão, antes que o ano se acabasse traria de volta apenas um.

Depois de ter que amputar uma das pernas, na tentativa de isolar o câncer, nada adiantou, pois o mal já havia se espalhado, meu irmão veio a falecer em cinco de novembro, depois de muito sofrimento e várias doses de morfina.

Apesar de seu Valdemar ter viajado de avião, as condições financeira não lhe daria este privilegio na volta, retornou de ônibus atravessando o brasil de sul a norte, viajando mais de cinco mil quilômetros de ônibus. Acredito eu, que, sem dúvidas ele deveria muitas vezes em pensamentos, durante a viagem, ter indagado a Deus, porque lhe fazia sofrer tanto sempre invertendo a lógica do curso natural da vida, poupando-lhe e lhe fazendo ver pessoas mais novas e tão próximas e queridas partirem antes dele.

Passamos o natal e ano novo, toda a família ainda abalada com a perda, mais uma vez nossa família diminuía, primeiro foi nossa irmãzinha, depois a mãe e agora nosso irmão.

Em uma conversa com meu pai, lhe perguntei como foram os difíceis dias no Rio de Janeiro, ele pensou um pouco antes de começar a falar e disse:

- Meu filho, tudo foi difícil, mas talvez o que mais me machucou foram as greves, acho que não deveria existir, porque se a pessoa não está satisfeita com seu emprego, saia e dê a vaga pra outro.

E passou a relatar o tanto que as greves causavam mal ao povo;

- Cheguei a pegar o ônibus para o hospital, e no meio do caminho ouvi um dos passageiros ou bandido, gritar; - Vamos sair todos, porque vamos tocar fogo no ônibus! Eles iam tocar fogo naquele único transporte dos pobres.

E continuou contanto:

- Vou dizer o que mais me deixou revoltado com aquelas greves; - Outro dia cheguei no hospital e encontrei meu filho se contorcendo de dor, o joelho enxado, já haviam cancelado três vezes a cirurgia porque os médicos também estavam na greve, eu tentava falar com as enfermeiras para que aplicassem pelo menos uma injeção para aliviar a dor, mas as enfermeiras diziam que nada podiam fazer, e que injeção só com a autorização do médico.

Depois de contar todo este martírio ele disse:

- Filho, se eu tivesse um revolver naquele tempo, eu teria feito besteira dentro daquele hospital, vocês iam saber notícia de mim pela televisão.

Perguntei para ele também o que nosso irmão falava para ele nos dias próximo à sua morte, ele então me disse, mas agora com os olhos meio que lacrimejando e a voz embargada:

- Ele uma vez me fez uma pergunta;

- Pai, o senhor se lembra daquelas vezes que a gente estava com fome e falava aquela gíria que o senhor não gostava? A gente dizia que estava “Brocado” e sempre o senhor nos repreendia, e pedia que não disséssemos aquela palavra, me recordo que o senhor dizia; - Digam que estão com muita fome ou com a barriga vazia, mas não falem que estão brocados; - Se lembra pai!...

- Seu Valdemar disse que sim, mas lhe perguntou:

- Porque meu filho, você está querendo saber se me lembro disso?

Meu irmão então disse para o pai:

- Pai, naquele tempo o senhor tinha razão, naquele tempo eu não estava brocado, eu estava somente com fome. Hoje sim eu estou brocado.

Elton Portela
Enviado por Elton Portela em 14/09/2020
Reeditado em 17/07/2023
Código do texto: T7063168
Classificação de conteúdo: seguro