Tributo da Miti à avó Mitia
O acaso, às vezes, nos reserva surpresas bem vindas, mesmo quando estas se associem a fatos que já vivenciamos e que acabamos por esquecer.
Procurava eu um post da minha sobrinha Miti (Áurea Mitiko Shinto), no seu blog CARPE DIEM, em que ela se refere ao nascimento do Leonardo, neto da minha irmã Harumi, quando encontrei pelo mais puro acaso o post abaixo, de 02/11/2007, em que ela nos brindou, um ano depois da morte da sua avó Mitia, minha mãe, com um depoimento sobre seu relacionamento com ela. Fiquei de fato surpreso, porque não me lembrava de tê-lo lido alguma vez. Só ao perceber o comentário que fiz no final do post é que me dei conta de que já o havia lido na época. Talvez, então, não lhe tenha dado a importância devida, daí não tê-lo fixado na memória.
Agora, pouco mais de 12 anos depois, o texto provoca um impacto diferente, mais forte ou comovente. Ao registrar o relacionamento pontual entre uma neta e sua avó, ele é como um retrato que revemos sobre tal relacionamento.
Para mim, na releitura que faço hoje, particularmente tocante é a passagem em que ela ajuda a avó na feitura do bolinho de arroz japonês chamado "inarisushi", refletindo aí o poder lúdico e relaxante de realizar um trabalho manual junto de pessoas de quem se gosta, que enseja conversas nas quais, conforme nos diz, "...às vezes eu até contava pra ela algumas coisas que pensava e que não contava pra ninguém."
Também significativa para mim é a sua lembrança do salutar costume do cochilo à tarde da sua "obatiam", de que me lembrei por testemunhá-lo pessoal e diariamente.
Daí a necessidade de registrarmos, pelas letras (analogamente a uma máquina fotográfica ou um smartphone), os acontecimentos que nos impactam emocionalmente. Como um bom filme que nos impactou um dia e que nos traz novas descobertas a cada vez que o revemos, particularmente relacionadas aos que de alguma forma estão ligados aos fatos relatados de um texto, a cada vez que o relemos, novas lembranças, novos valores, novas interpretações e novas emoções virão.
Paulo Tadao Nagata
No Blog Carpe Diem, de 02/11/2007:
"Áurea Mitiko Shinto
CUIDA DELA... Um tributo à Obatiam Mitia
Nestas últimas semanas está fazendo um ano que minha obatiam Mitia Nagata se foi. Há alguns meses, depois que eu comecei a frequentar o Orkut, um dia encontrei uma comunidade ( aliás, não só uma! ) que falava... AMO MUITO MINHA BATIAM, e me inscrevi lá ( e também naquela que dizia AMO MUITO MEU DITIAM...kkk pros velhos também não ficarem com inveja!) e isso me fez escrever um pouco sobre as minhas bás, que é como carinhosamente chamava as duas. Mas hoje não vou falar sobre minha obatiam Shizue Shinto- a mãe do meu papai... Vou falar sobre minha Obatiam Mitia, a mãe de minha mãe.
Semana passada foi a missa da minha obatiam Mitia. Eu nem acredito que faz esse tempo... Parece que foi ontem. Parece que foi ontem que minha irmã me ligou falando da morte de minha avó... Esta notícia desencadeou em mim uma reação muito intensa que acabou em minha separação. Pois na verdade, naquele dia eu tive uma certeza muito forte - aquela certeza de que nada seria mais importante pra mim em toda vida, do que estar ali em Marília com a minha verdadeira família, e de que não seria para mim o suficiente ter o apoio de qualquer pessoa... Eu queria ver minha obatiam pela última vez!
Eu não sei nem em que ano foi... mas depois de uma certa idade - acho que foi quando eu comecei a ganhar algum dinheirinho e podia tomar algumas decisões sozinha- que eu achei que seria importante passar sempre ou o Natal ou o Ano Novo com meus parentes ali em Marilia. E aí, desde então, todos os natais ou anos novos eu arrumava minha malinha e ia passar ali uma semana com minha avó e meus tios de Marília...
E esses dias em que passava ali com minha vó Mitia eram sempre tão cheios de convivência, que eu sentia naqueles dias muito do que era a rotina da minha vó... Me lembro de me sentar á mesa com ela pra refeições simples e ficar conversando, conversando.. ( bom... todo mundo sabe que a minha especialidade é conversar!) e ficar ouvindo o ponto de vista característico dela. Eu me lembro do como este ponto de vista mudou com o tempo... ( no início ela dizia... 'tem que arrumar namorado... Tem namorado?' e ela fazia um sorriso maroto engraçado - e 'quem?' huahuahua... e interessantemente às vezes eu até contava pra ela algumas coisas que pensava e que não contava pra ninguém.. depois de alguns anos eu me lembro de ter ouvido algo como 'melhor só do que mau acompanhada' e essa mudança me pareceu uma atitude bem moderna, principalmente vinda de minha bá...). Nas vésperas das festanças me lembro de ajudá-la a encher os deliciosíssimos inarisushis - os saquinhos de velho, como dizem - e às vezes bem eu queria enchê-los até estourar...kkk... de tão gostosos ficavam eles... E enquanto enchia... falava, falava, falava... ouvia, ouvia... Eu sempre digo que a minha vó Shizue foi a avó da minha infância - aquela de quem ouvia... 'Bacataré...' 'Dame, neh'... Não que minha avó Mitia não dissesse isso, mas eu já convivi muito mais com ela quando já era mulher e minhas conversas com ela às vezes eram quase confidências... E às vezes ela me pegava no pulo do gato... 'e fulano? é namorado?' huahuahua...terrível obatiam... sempre preocupada, sempre atenta.
Me lembro de tardes em que eu pegava minha avó ensaiando.. O motivo pelo qual devo gostar tanto de karaokê deve ser o fato de que esta obatiam adorava cantar. Ela ia pro quarto.. e em alguns dos últimos anos em que passei em Marília eu sempre pedia pra ela cantar um pouco pra mim... O que eu não devia ter feito, era ter dito que ela não tinha 'entrado' direito a música... Oh...kkk... ela pedia pra eu parar a fita do play back e começar tudo de novo! E me lembro da imagem dela, com um... simulador de microfone (janelas fechadas - acho que para os vizinhos não ouvirem...) à porta do banheiro de seu quarto cantando...
(não me lembro porque ela cantava ali perto do banheiro, mas imagino que tenha a ver com o eco!).
A grande alegria de minha avó era a música e essa convivência forte com a comunidade nikkey do Oterá (uma espécie de templo budista) onde ela participava sempre nos últimos dias do ano no preparo do famoso e delicioso moti gomê. Me lembro de sempre levar comigo em minhas malas aqueles pacotinhos com moti.
No dia do ano novo eu acordava cedo para tomar o ozoni (uma sopa com 7 ingredientes e com um motizinho dentro) que a obatiam preparava. Isso não importava o horário em que a festança do dia anterior havia acabado - ela sempre dizia que dava sorte tomar o ozoni... e acordava todo mundo pra tomar bem quentinho, logo que ela tivesse terminado de preparar! hahahaa... Que delícia...
Na maioria das vezes, depois de ajudar ela a fazer qualquer coisa - lavar a louça, enxugar alguma coisa... ( na verdade ela não gostava muito quando eu queria ajudar! ela dizia que eu devia aproveitar as minhas férias!) eu sentava ali na mesa da cozinha e ficava olhando ela fazer algo... misturar a comida, preparar o almoço, dar um pedaço de giló pro passarinho - ela sempre gostava muito de passarinho e outros bichinhos ... Ela fazia tudo com um timing muito preciso e novamente, muito característico dela. Ai ela ia descansar no meio da tarde... tirar uma siesta... e eu sentava na sala pra ler algum livro.
Não sei porque, eu achei que esta minha avó seria algo como uma Highlander... alguém que viveria para sempre. Alguém que sempre estaria ali, do meu lado no meu fim de ano para me acolher para aqueles últimos dias... e para me energizar.
Mas... um dia ela se foi. Eu dormi no dia do funeral ali no cemitério junto com meu tio. Queria ficar o máximo que pudesse com ela - talvez um último adeus... Era importante poder vê-la pela ultima vez. Naquele dia somente um pensamento me deixava mais feliz e me alentava. O fato de que ela finalmente poderia aí encontrar meu avô Nobutaro novamente. E ela se foi.
Um mês depois, quando estava decidindo sobre a minha separação, a sua imagem me veio a mente como um trovão. Algo que havia se dissipado de minha mente quando acontecera, mas que vinha vívido e forte. Um dia em que, na volta para casa com meu ex-marido, ela o cutucava e dizia... 'Cuida dela' e ele não reparou.. e ela repetia 'Cuida dela'. Ela já sabia.
Eu levo da minha avó (de fato de todos meus avós) pra sempre essa perseverança, essa força interior, essa dignidade e esse dom de cuidar de maneira integral das pessoas. Um senso maior de comunidade de todo e menos individualista e egoísta.
Hoje é dia 2 de novembro. Finados. Acendo uma vela para minha vó Mitia... Pedindo a Deus e a meu avozinho que agora esta a teu lado que façam o mesmo por ela. 'Cuidem dela'."
PS: Em uma fatalidade típica do acaso, minha sobrinha Miti, que escreveu o texto acima homenageando a avó Mitia no seu blog, faleceu neste ano, em 13/04/20, aos 51 anos.