Um pouco da minha história
Hoje trago, com imensa alegria e saudades, um pouco da história da minha família. Dos meus pais, meus avós, meus tios, pioneiros de Londrina. Vamos mergulhar em águas passadas há mais de meio século. Em tempos muito difíceis. De trabalho árduo. De luta incansável. De riscos. E também de muita diversão. Convido vocês a fazerem esta viagem no túnel do tempo comigo.Vamos embarcar nesse trem. Eram os anos 30. Meu avô era empreiteiro da Companhia de Terra Norte do Paraná , Subsidiária da Paraná Plantation, maior empresa inglesa de Colonização da época , cujos gestores eram Lord Lovat(escocês ) Arthur Thomas , inglês e Willie Davis(descendente de ingleses) que, originalmente , vieram buscar terras para a cultura do algodão, mas o preço caiu no mercado internacionsl, e o do café subiu, vertiginosamente, o que os fez mudar de plano. Qdo chegaram a Londrina, esses empreendedores, maravilhados com a fertilidade da terra roxa e o clima, parecido ao de Londres, com suas manhãs de bruma, neblina e chuva fria, e muitos interesses econômicos , adquiriram 500.000 alqueires Paulistas(13.310 km2) de terras do Estado do Paraná a preços realmente apetitosos, diria, de pai para filho, e aqui se estabeleceram para dar início à colonização da cidade, batizada por Londrina, ou seja, pequena Londres . Meu avô , agrimensor valente, já era parceiro dessa companhia em Cambará, Jataizinho, norte velho do Paraná, abrindo estradas, construindo pontes, estradas de ferro, desbravando as grandes florestas da região. Qdo chegaram a Londrina, em 1933, tudo aqui era um imenso mar verde. Só se enxergavam as árvores , o imenso azul da abóboda celeste e ouvia-se, com deleite, o barulho dos rios, das cachoeiras, o canto alegre e mavioso dos milhares de pássaros que adornavam as florestas : canários , azulões, sabiás, maritacas, gralhas verdes, azuis, tucanos, pica-paus, pintassilgos, trinca ferros e tantos outros. Minha mãe, Francisca, vulgo Chiquita, ainda menina, contou-me que foram morar em um rancho muito humilde, de madeira , sem qualquer infra estrutura, sem saneamento básico , sem banheiros, só uma casinha, longe da casa, com uma privada de caixote, e se higienizavam com jornal ou até com sabugos de milho. Não havia papel higiênico. Sem luz elétrica, usavam lamparinas ou lampiões a querosene. À noite só se ouvia o barulho dos grilos, o canto doído e distante das cigarras, o coaxar dos sapos no riacho q cortava a cidade, iluminada apenas pelas estrelas e os vagalumes. Os vagalumes eram a distração das crianças. Colocavam-nos em uma garrafa para apreciar a sua cor cintilante. Que beleza aos olhos daqueles pequeninos que não tinham super-homens, nem vídeo-games, nem bonecas de cilicone, que falam, riem, choram, nem rádios, nem TVs, nem celulares, nem shoppings, nem bicicletas, nem nada. Apenas a criatividade para inventar seus próprios brinquedos. E como tinham. Fabricavam carrinhos com latas de marmelada, de sardinha, criavam petecas de palha de milho, com penas de galinha carijó, caçavam lindas borboletas, de todas as cores, faziam bolinhas de barro amassado, secavam-nas ao sol para ficarem duras, firmes, verdadeiras armas para o estilingue que fabricavam para a caça das rolinhas e pombas... mistura do almoço ou jantar. Suas bolas? Eram feitas com suas meias e areia. E lá estavam os meninos jogando suas peladas nas ruas secas e empoeiradas, ou enlameadas pelas chuvas de verão, até o anoitecer, quando as mães os intimavam a entrar para o banho de bacia. As meninas brincavam de pular corda, suas bonecas , seus bebês , eram as espigas de milho, de cabelos dourados, ruivos, negros, ou grandes abóboras maduras colhidas nos imensos quintais. Também utilizavam as latinhas, os caquinhos q encontravam enterrados nas ruas de barro vermelho, para brincarem de casinha, termo doce utilizado por elas à época. Brincavam também de cirandinha, passa anel, ouviam os causos de seus pais, de assombração, de lobisomem, almas penadas, Saci Pererê, e de um certo turco , mascate, que pegava crianças... desobedientes... Minha mãe e seus irmãos tinham o privilégio de ter em casa um poeta particular, vivo, só para eles, meu avô, José Leite de Carvalho. Cedo minha mãe aprendeu a declamar sua primeira poesia: A moedinha. Esta linda moedinha, sabes de quem eu ganhei?/ Da querida vovozinha, por um beijo que lhe dei./ Por um beijo ou um abraço, não me lembro muito bem./ Queres saber o que faço?/ Eu não dou para ninguém. / Eu não dou porque preciso./ Tenho gastos a fazer, /quem tem bastante juízo, / bem poupado deve ser: compro um carro, uma bicicleta, uma corda de pular, uma bonequinha preta, uma só não, quero um par./ Coitada de uma velhinha, está pedindo um vintem,/ não tenho nada pra dar, você tem?/ Ah minha moedinha que a vovozinha me deu / mas a pobre da velhinha precisa mais do que eu. Fez centenas de outras. Além de liderar, motivar a equipe de trabalhadores nas difíceis e perigosas derrubadas, nas queimadas, nas picadas para estacamento das ruas do povoado que crescia célere , a passos largos, contava minha avó , que ele não dormia, a inspiração o acordava de madrugada, a qq hora, o coração batia alto. O jeito era pegar o caderno, o lápis, e escrever seus lindos versos. Além da poesia, fazia versões se utilizando de músicas para colocar suas letras. Houve uma delas, na música de Loirinha, escrita em homenagem a Londrina, que fez grande sucesso nos carnavais da cidade, na voz de meu pai, Edgar Palma,: LONDRINA, Londrina, Londrina do do meu coração , aguenta firme oh rapaziada, pega a namorada e entra no cordão ...Cá em Londrina, o dia tão risonho, até parece um sonho, o céu é tão azul, no Carnaval o povo cá do norte goza de mais sorte que o povo do sul... Vamos dançar , vamos todos pular, que o Carnaval são três dias de Festa, Londrina já e fantasiada, e ornamentada por lindas florestas/ O rei momo é rei do Carnaval, e o Carnaval é rei da animação, E a nossa querida Londrina, formosa menina, noiva do sertão. Nosso cordão é verde amarelo, embora singelo, dá linda impressão, são duas cores da nossa bandeira e será a primeira do meu coração. Londrina, Londrina...O escritor londrinense, Carlos Alberto Francovig, o descreveu em seu livro, Ouro Verde, Café Quente, como o Porta Estandarte da poesia londrinense, ou seja, inaugurou a literatura popular da cidade, com seus versos alegres, bem humorados, e, por vezes, irreverentes . Mas Londrina daquela época não era só um mar de árvores, virou um mar de lama nas temporadas de chuva. Minha mãe e seu irmão Zezinho, amassaram muito barro para chegar à escola, quilômetros distante de onde moravam. E, para chegar até ela, passavam por picadas estreitas. Desviavam de cobras venenosas, juraram que viram a cobra voadora por entre as folhas da mata densa e fria. Nesse dia chegaram brancos e sem fôlego em casa. Meu avô era benzedor famoso. Curou muita gente. Um galho de alecrim, de arruda, ou pouco de fumo de corda, pó de café , ou outra erva qualquer, um copo de água, uma reza forte, e tudo passava. Enfrentaram também as formigas correição, aranhas caranguejeiras imensas, mandruvás peludos que queimavam a pele, os mosquitos pólvora, que qdo picavam, provocavam coceira, vermelhidão e até infecção, os bichos de pé, os piolhos, abelhas europa, e outros insetos. Enfrentaram macacos , tatus, porcos espinhos , veados, jaguatiricas, lagartos, e até onças pintadas. Uma aventura perigosa que os ensinara a vencer todo e qualquer obstáculo na vida. E não só estudavam, era preciso ajudar no orçamento familiar. Meu avô , à época, era chefe do Matadouro Municipal, e minha avó comprava bucho,limpava-os muito bem , no capricho , embalava-os adequadamente , e, ainda muito pequenos , saíam meu tio , minha mãe e sua irmã Maria, mais velha, pelas ruas quentes, de terra batida da cidade, para vendê-los. Olha o bucho. Fresco e limpo. Está passando o bucho. As donas de casa saíam correndo pra comprar o bucho da Dona Rufina, esposa do Zé Leite, poeta popular, benzedor, conhecido e querido por todos, do simples operário ao Prefeito da cidade, aos altos executivos da Companhia de Terras, ingleses, russos, alemães . Era carismático , muito religioso, devoto de São José, extremanete humano, a todos ajudava , estendia sua mão. Minha mãe contava que, certa época, um funcionário, negro, da companhia, sofrera um acidente doméstico, com fogo. Queimou o corpo todinho. Ninguém queria cuidar do pobre homem., que exalava forte cheiro de carne queimada, já em decomposição. Meu avô foi cuidar dele todos os dias até sua morte. Voltando ao bucho, com o dinheiro das vendas, em poucos anos de trabalho, contou-me minha tia Carmem Lucia, conseguiram comprar um terreno mais próximo do centro do povoado, e construir uma casa no alto da Higienópolis, esquina com a Piauí. Nessa época minha mãe trabalhava na casa conhecida como a casa dos sete anões , Higienópolis esquina com a Tupi, demolida mais recentemente e muito criticada , uma relíquia da arquitetura,um ponto turístico, patrimônio histórico da cidade , acabou- se em cinzas, para ceder espaço a um prédio comercial, um banco, sem qualquer atrativo ou beleza arquitetônica. Tenho maior orgulho de saber q meus avós foram personagens importantes da história de nossa cidade. Pioneiros que derramaram seu suor, seu sangue, na sua construção. Em sua homenagem, temos a rua José Leite de Carvalho, perto do Zerão, no Jardim Lilian.
Benvinda Leite Palma