PÁSSAROS NA CHUVA
O frio naquele dia era daqueles de fazer bater os queixos e tremer as pernas. Ela acordou e preparou uma caneca de chocolate bem quente. A chuva caía e o som gostoso da água batendo nas folhas e na telha era um convite a reflexão. As crianças ainda dormiam; não levantariam nem tão cedo com aquela temperatura. A caneca fumegava em sua mão enquanto observava alguns pássaros que aventuravam-se nos galhos encharcados da goiabeira.
Assoprou instintivamente o chocolate antes de uma golada experimental. Mais uma vez tinha acertado nas dosagens de chocolate, leite e açúcar. Pôs também um pouco de creme de leite para atribuir cremosidade. Estava espetacular. Observou um casal de rolinhas que fazia o tradicional ritual pré
acasalamento. A fêmea tentava esgueirar-se, mas era assediada tenazmente pelo macho obstinado. Era para ele um verdadeiro teste de paciência. Vendo aquilo, ela pensou em como no mundo humano as coisas já não eram mais assim há muito.
Os homens pareciam não ter mais nenhuma paciência com fêmeas
reticentes ou que apresentem alguma "resistência pré acasalamento". Eles
geralmente desistem e procuram uma fêmea "mais fácil". Tomou outro gole e
viu quando a passarinha mais uma vez esquivou-se de seu pretendente
perseverante. Pensou no fato de que os homens mudaram porque também as mulheres haviam mudado. De algum modo, em algum momento da história, elas passaram a ceder com maior brevidade às demandas daqueles que noutro tempo compreendiam a necessidade de esperar pelo "tempo certo" em que as coisas naturalmente ocorreriam. Não dava para precisar com exatidão quando foi que criaturas doces e apaixonadas por natureza, as mulheres, permitiram-se ao que hoje se vê, a saber, comportamentos equivalentes ao que passaram gerações criticando em alguns homens, tendo como resultado um desvalor de seu gênero que desconheceu em sua idade mais tenra.
Ela então voltou à cozinha e preparou um pouco mais da bebida. Arrependeu-se de haver feito apenas meia caneca. Aproveitou e passou manteiga em algumas torradas para acompanhar. Sentou novamente onde antes estava e mordeu uma das torradas cujo barulhinho indicava a esperada
crocância. Olhou para a goiabeira e lá estavam ainda os pássaros no que para humanos seria um impasse. A ave feminina permanecia incólume em sua irredutibilidade enquanto a outra não dava mostras de cansaço ou de que desistiria da empreitada. Um novo gole de chocolate fumegante a fez aquecer-se por dentro.
Mas ainda assim percebeu que necessitaria mais que chocolate para retroceder em sua própria mudança e aquecer seu hoje gélido coração. Quando foi exatamente que perdera sua fé na humanidade, sobretudo no sexo oposto? Quando foi que, como a pragana, seus sonhos de menina dissiparam-se varridos pelos ventos da vida? Não foram apenas as demais de seu gênero ou os homens que mudaram. Suas mudanças também foram significativas.
Outrora apaixonada pela vida, tinha agora como sua motivação para continuar apenas o instinto materno. De fato amava seus filhos e jactava-se de que apenas suas presenças em sua vida eram-lhe mais que suficiente. Repetia isso incansavelmente para si e para quantos ousassem argui-la a respeito de sua "sozinhez". Disse isso tantas vezes que seu subconsciente realmente absorveu a informação. Mas naquele momento, observando a chuva e os pássaros, viu-se questionando sua verdade.
Não percebeu quando o pensamento sub-reptício entrou e preencheu uma lacuna que aparentemente não deveria existir. Sim, inconscientemente um "quartinho secreto" havia permanecido ali e as informações que nele haviam eram absurdamente divergentes daquelas que moldavam seu atual sistema de crenças. Ali ainda havia amor, esperança e fé nos homens como gênero e também na humanidade como um todo. Ali, e apenas ali, naquele diminuto espaço remanescente, ainda perseveravam os sonhos, ainda cresciam as flores multicoloridas e a felicidade a dois era possível. Sim, era
possível. Os eventos passados não tinham necessariamente que determinar osdo porvir.
Ali as pessoas não eram iguais, conquanto sim, muitas se parecessem em suas atitudes. Mas o mundo era infinitamente maior do que aquele pequeno onde todos tinham como objetivo causar sofrimento ao seu par, ao seu próximo. Ali o mundo era repleto de novas possibilidades, de novas pessoas, de novas experiências e as configurações dessas estavam em conformidade com o sentimento prevalente naquele cantinho "esquecido".
Um sorriso brotou em seu rosto. Imediatamente as defesas de sua mente
subconsciente armaram-se para combater o pensamento intruso. Não havia
registro dele por ali. Mas o sentimento liberado quando a porta se abriu permitiu o pequeno Davi ousar enfrentar o gigante Golias. Um gole a mais do
chocolate liberou uma carga extra de endorfina e aquilo que havia atrás da pequena porta naquele quartinho outrora esquecido principiou a espalhar-se
em todas as direções. Lágrimas brotaram em seus olhos; um sorriso moldou as feições de seu rosto e um novo sentimento parecia possuir aos poucos os
espaços de seu coração antes empedernido. Ela olhou e viu que os pássaros
agora copulavam. Não havia percebido o momento em que a chuva cessou e
agora via no céu um lindo arco-íris onde havia nuvens cinzentas. O sol aparecia timidamente, mas com seu potencial esplendoroso…
— Mamãe? – disse a voz de seu filho.
Ela virou-se ainda com os olhos tingidos da vermelhidão típica dos que choram e viu seu casal de filhos com os pijamas ainda em desalinho.
— Feliz aniversário, mamãe! – disseram eles em coro enquanto estendiam os braços para abraçá-la.
Um canário pousou num dos galhos da goiabeira e os brindou com seu majestoso canto...
Texto escrito por um amigo que admiro muito, escritor de excelência...Neto Kof.
Agradeço de coração essa doce homenagem.
Assoprou instintivamente o chocolate antes de uma golada experimental. Mais uma vez tinha acertado nas dosagens de chocolate, leite e açúcar. Pôs também um pouco de creme de leite para atribuir cremosidade. Estava espetacular. Observou um casal de rolinhas que fazia o tradicional ritual pré
acasalamento. A fêmea tentava esgueirar-se, mas era assediada tenazmente pelo macho obstinado. Era para ele um verdadeiro teste de paciência. Vendo aquilo, ela pensou em como no mundo humano as coisas já não eram mais assim há muito.
Os homens pareciam não ter mais nenhuma paciência com fêmeas
reticentes ou que apresentem alguma "resistência pré acasalamento". Eles
geralmente desistem e procuram uma fêmea "mais fácil". Tomou outro gole e
viu quando a passarinha mais uma vez esquivou-se de seu pretendente
perseverante. Pensou no fato de que os homens mudaram porque também as mulheres haviam mudado. De algum modo, em algum momento da história, elas passaram a ceder com maior brevidade às demandas daqueles que noutro tempo compreendiam a necessidade de esperar pelo "tempo certo" em que as coisas naturalmente ocorreriam. Não dava para precisar com exatidão quando foi que criaturas doces e apaixonadas por natureza, as mulheres, permitiram-se ao que hoje se vê, a saber, comportamentos equivalentes ao que passaram gerações criticando em alguns homens, tendo como resultado um desvalor de seu gênero que desconheceu em sua idade mais tenra.
Ela então voltou à cozinha e preparou um pouco mais da bebida. Arrependeu-se de haver feito apenas meia caneca. Aproveitou e passou manteiga em algumas torradas para acompanhar. Sentou novamente onde antes estava e mordeu uma das torradas cujo barulhinho indicava a esperada
crocância. Olhou para a goiabeira e lá estavam ainda os pássaros no que para humanos seria um impasse. A ave feminina permanecia incólume em sua irredutibilidade enquanto a outra não dava mostras de cansaço ou de que desistiria da empreitada. Um novo gole de chocolate fumegante a fez aquecer-se por dentro.
Mas ainda assim percebeu que necessitaria mais que chocolate para retroceder em sua própria mudança e aquecer seu hoje gélido coração. Quando foi exatamente que perdera sua fé na humanidade, sobretudo no sexo oposto? Quando foi que, como a pragana, seus sonhos de menina dissiparam-se varridos pelos ventos da vida? Não foram apenas as demais de seu gênero ou os homens que mudaram. Suas mudanças também foram significativas.
Outrora apaixonada pela vida, tinha agora como sua motivação para continuar apenas o instinto materno. De fato amava seus filhos e jactava-se de que apenas suas presenças em sua vida eram-lhe mais que suficiente. Repetia isso incansavelmente para si e para quantos ousassem argui-la a respeito de sua "sozinhez". Disse isso tantas vezes que seu subconsciente realmente absorveu a informação. Mas naquele momento, observando a chuva e os pássaros, viu-se questionando sua verdade.
Não percebeu quando o pensamento sub-reptício entrou e preencheu uma lacuna que aparentemente não deveria existir. Sim, inconscientemente um "quartinho secreto" havia permanecido ali e as informações que nele haviam eram absurdamente divergentes daquelas que moldavam seu atual sistema de crenças. Ali ainda havia amor, esperança e fé nos homens como gênero e também na humanidade como um todo. Ali, e apenas ali, naquele diminuto espaço remanescente, ainda perseveravam os sonhos, ainda cresciam as flores multicoloridas e a felicidade a dois era possível. Sim, era
possível. Os eventos passados não tinham necessariamente que determinar osdo porvir.
Ali as pessoas não eram iguais, conquanto sim, muitas se parecessem em suas atitudes. Mas o mundo era infinitamente maior do que aquele pequeno onde todos tinham como objetivo causar sofrimento ao seu par, ao seu próximo. Ali o mundo era repleto de novas possibilidades, de novas pessoas, de novas experiências e as configurações dessas estavam em conformidade com o sentimento prevalente naquele cantinho "esquecido".
Um sorriso brotou em seu rosto. Imediatamente as defesas de sua mente
subconsciente armaram-se para combater o pensamento intruso. Não havia
registro dele por ali. Mas o sentimento liberado quando a porta se abriu permitiu o pequeno Davi ousar enfrentar o gigante Golias. Um gole a mais do
chocolate liberou uma carga extra de endorfina e aquilo que havia atrás da pequena porta naquele quartinho outrora esquecido principiou a espalhar-se
em todas as direções. Lágrimas brotaram em seus olhos; um sorriso moldou as feições de seu rosto e um novo sentimento parecia possuir aos poucos os
espaços de seu coração antes empedernido. Ela olhou e viu que os pássaros
agora copulavam. Não havia percebido o momento em que a chuva cessou e
agora via no céu um lindo arco-íris onde havia nuvens cinzentas. O sol aparecia timidamente, mas com seu potencial esplendoroso…
— Mamãe? – disse a voz de seu filho.
Ela virou-se ainda com os olhos tingidos da vermelhidão típica dos que choram e viu seu casal de filhos com os pijamas ainda em desalinho.
— Feliz aniversário, mamãe! – disseram eles em coro enquanto estendiam os braços para abraçá-la.
Um canário pousou num dos galhos da goiabeira e os brindou com seu majestoso canto...
Texto escrito por um amigo que admiro muito, escritor de excelência...Neto Kof.
Agradeço de coração essa doce homenagem.