Dona Lú aos sessenta
Em algum lugar da infância ainda era madrugada. A pequena casa de uma pequena vila periférica da zona norte de São Paulo dormia, mas os galos dos terrenos vizinhos já nos diziam sobre a hora de acordar. Tocava o rádio relógio. Um apito irritante despertava a família. Pai, mãe, filho e filha. Em plena década de oitenta, pelo receptor de ondas curtas, era o Zé Béttio e sua voz quem nos dava companhia já tão cedo.
Ia o pai à padaria, voltava. Pão, leite e margarina. Fazia mingau de aveia e levava para os filhos como primeira refeição. A mãe fazia o café, hasteava a bandeira e tocava a corneta no quartel. Os filhos cabeças-de-papel que não marchassem direito!
As tarefas eram muitas e as regras bem claras ao filho mais velho: levar a irmã à escola, fazer sua própria lição do colégio, limpar (com esmero) a casa e alimentar o cachorro, tudo ainda pela manhã, pois iria para a escola à tarde. Coisa pouca, sem crise mesmo...
Ela ia trabalhar e voltava no começo da noite. Governava como ninguém toda a arrumação e limpeza na casa das patroas. Quando retornava ao lar, era a hora da checagem. O dedo da mãe ia direto aos cantos mais escondidos da casa e se detectasse algum sinal de poeira ou gordura, o castigo podia ser dolorido. As tão despojadas sandálias de borracha havaianas deixariam de cumprir o mero papel de calçado.
Atrás da geladeira, checado.
Por cima dos armários de cozinha, checado.
Debaixo da cama, checado.
Ufa!
Amanhã é só repetir tudo igual e ficaria tudo bem. Essa espécie de educação espartana podia parecer até um pouco exagerada, mas ensinava limites e valores. Bem, mas nem tudo era apenas dever. Aos finais de semana, tinha o passeio com piquenique no parque, o sorvete na padaria e refrigerante no almoço de domingo.
A mãe mandava o moleque na venda levando os vasilhames de vidro vazios que trocaria por cheios. Cheios de um líquido bem turvo e gaseificado. Na mesa da cozinha, macarrão com frango e um televisor preto e branco com sérios problemas de sintonia chiando na sala. Solução: lã de aço na antena! A família almoçava com os pratos no colo prestigiando de modo fiel o Programa Silvio Santos.
No mais, também fazia a nossa alegria o aparelho de som, tanto nas animadas festas de aniversário cheias de vizinhos quanto no dia-a-dia. Nosso toca-discos era sempre bem abastecido pelas trilhas sonoras de novelas de certa emissora líder de audiência. Era inegável a emoção ao ver a mãe trazer um novo disco debaixo do braço. Nossa primeira cultura musical. Mas também haviam muitos discos infantis, discos de música orquestrada e gêneros mais antigos herdados das coleções musicais da avó paterna.
Fotos. Na verdade, mamãe Lucinda adorava fotos. Fazia álbuns enormes para relembrar os amigos da época. O tilintar de uma sineta anunciava o fotógrafo que puxava um carneiro multicolorido pela rua e ela corria para não perde-lo. Ele fazia aquelas nostálgicas fotos de monóculo, muito populares na época. O simpático velhinho atendia ao chamado. Ela colocava os filhos numa pequena charrete atrelada ao corpo do carneiro para o clique e saia satisfeita com o resultado. Afinal, as crianças iriam adorar ver aquilo quando mais velhas, de fato.
Sim, de fato, as crianças já hoje adultas, contemplam a beleza capturada no papel. Revivem através das fotos desbotadas, de cores desmaiadas, a simplicidade que as construiu e as preparou para os desafios mais complexos. Os filhos criados se alegram pela união familiar, pelas dificuldades vencidas e pela bênção do tempo que coroa nossa tão batalhadora matriarca com seis décadas de vida.
Todas essas pessoas do caminho, deixaram para nós o seu sorriso e a sua história que se misturam e se contam com a nossa. A quem interessar possa, vale a pena abraçar com palavras, todos aqueles amigos que se foram e os que ainda nos acompanham. Essa tal distância sempre se encurta pelas lembranças. E nós nos lembramos e lembraremos de todos vocês.
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Nota: este texto, originalmente escrito em 2014, foi declamado na festa de 60 anos da minha mãe e faz parte do nosso conjunto familiar de memórias.