O MURO CAIU

Tantas foram as vezes em que eu , quando criança ,pulei ,com medo de perder minha canarinha , aquele muro, que ficava atrás de um dos gols.Jogava a bola e voltava com os bolsos e as mãos cheias de seriguela. Nessa época , pensava que tinha o domínio sobre tudo o que Deus havia deixado na terra. E que pegar aquelas frutas ,verdes, maduras, não seria pecado.Afinal, estava com fome. Pedi seria o correto , mas o pintavam de uma forma , que não teria coragem de pedi nem o que ,de fato, me pertencia, minha bola. O famoso muro de Arodão.Muro esse que ao longo dos anos foi bombardeado por bolas de vários tamanhos,pesos, e mesmo assim, resistiu até ser derrubado para construção de uma clínica.

Cresci e conheci o dono do muro. Não era nada do que diziam. Era atencioso, brincalhão. Inclusive , até me apelidou de “ FELÃO “ . Não podia me ver que perguntava por meu pai: “ e aí felo, cadê o companheiro Zinho ? E antes deu responder, ele mexia com outro , que passava ao redor “ Vem cá Germino, você conhece FELÃO ? E dávamos risada. Era amigo de todo mundo.

Comecei a trabalhar e uma ,duas vezes por mês,ele,aparecia no supermercado. Enquanto enchia uma cestinha de mercadorias ficava fazendo o que mais gostava, conversar. As vezes , já escuro,quando retornava com uma sacola de pão na mão encontrava-o chegando da fazenda em seu carro, pedia – com educação – para que eu abrisse o portão que dá acesso a garagem da sua casa. Abria e fechava. Agradecia. Em seguida, eu seguia.

Ao vê-lo deitado , imóvel , sem vida, a primeira coisa que pensei foi : Outrora ,havia sido o muro ; agora,o dono. Com o tempo , tudo desaba, morre. É a vida. Segui o cortejo ,e durante o percurso até a “cidade dos deitados “, onde futuramente nosso corpo habitará , fiz uma retrospectiva da minha vida , e demorei na época em que eu “ ganhava o pão de cada dia com o suor do meu rosto “, jogando no Ceasa. Achava que quanto mais suasse correndo atrás de uma bola mais pão ganharia. Coisa de criança. Entrei no cemitério acompanhado de dezenas de pessoas, parentes , amigos , curiosos; e em cima de um túmulo , foi que caiu a ficha que o proprietário do tão falado muro havia "caído". Segundos antes do enterro, um funcionário , deduzi que fosse , de uma de suas fazendas desejou-lhe boa viagem ,dizendo aos prantos : “ Vai com Deus , meu patrão . “

Que seu espírito erga ,assim como foi erguido um novo muro no lugar do seu , e encontre com o engenheiro da nossa vida. Antes de sair , também desejei- lhe ,silenciosamente : " Boa viagem companheiro Arodão ,dono do muro da minha infância . As lembranças não morrem.

Rafa Garapa
Enviado por Rafa Garapa em 04/03/2020
Reeditado em 31/03/2021
Código do texto: T6880172
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