PROMETE EMPURRAR O MEU BALANÇO DE NOVO, BEM FORTE?

Enquanto velam o seu corpo já inerte, cá estou tentando registrar algo que te eternize: um bom homem que partiu jovem. Sou uma privilegiada por ter tido “quatro” de você em vida, e infeliz quadruplicadamente por ter perdido você pra ELA.

Na minha primeira infância, tive um irmão 15 anos mais velho. A nossa diferença de idade não impedia que brincássemos juntos (cada um da sua forma, obviamente). Você, mesmo desfrutando da sua juventude e já interessado em garotas, sempre reservava algum tempo para empurrar o meu balanço dependurado naquela grande mangueira. No início, o friozinho na barriga era gostoso e prazeroso, mas quando os meus pés calçados por meias soquetes e melissas-aranhas tocavam as folhas mais altas das árvores, a velocidade aumentava e o desespero batia… Eu implorava praquilo parar! Chorava e gritava alto em exasperação e, veja só, você ficava escondido atrás de algum tronco ou mureta só para ver a minha aflição, rindo e rolando com a mão na barriga. Uma brincadeira perigosa, não vamos negar, mas foi você um dos responsáveis por “plantar a sementinha” da coragem e de vôos cada vez mais altos, que me acompanham até os dias de hoje. Detalhe que os meus gritos e agonia sempre chamavam a atenção da nossa mãe-avó, que saía apressada dos seus afazeres domésticos, limpando as mãos no avental para, na sequência, te dar um grande “peteleco” na orelha por sua má criação.

Por toda a vida eu tive um primo-tio. Sempre explicava quando precisava: “O Mateus na verdade é meu primo criado como tio. Ele é filho da minha tia mais velha que foi embora e deixou o Mateus aos cuidados da minha avó, ainda bebê. Como ela não voltou, vovó o adotou como o filho mais novo, criado por ela com a ajuda dos tios, que na verdade eram irmãos”… Enfim, uma engenharia toda. Como era um cálculo matemático cansativo e ele tinha praticamente a mesma idade dos meus tios, ele virou Tio e pronto. Tio Mateus. E creio que ele gostava desse tratamento, pelo menos nunca reclamou. Minha avó, que na verdade também era a minha mãe, o tratava como filho mesmo, o rapaz caçula de sua prole. Então foi assim desde então.

O Tio Mateus era um moço peculiar. Ainda jovem, três coisas o destacavam, e que aqui posso citar. Era o maior degustador de galinha caipira que se tem história! Ele era famoso por traçar uma panelada inteira, partir os ossinhos da coitada e ainda chupar o tutano dos cambitos. A coisa toda era tão voraz e suculenta que superava uma temporada inteira do Game of Thrones! Ele saía da saga com o rosto inteiro lambuzado de gordura e corante, e depois ainda mandava pra dentro dois litros inteiros de coca-preta (como ele designava o famoso refrigerante). Dava gosto de ver o prazer que uma boa refeição o proporcionava. E esse prazer, obviamente, o acompanhou durante boa parte da vida, juntamente com uma camada extra de gordura corporal, garantindo sempre os seus abraços fofinhos e aconchegantes.

Um segundo aspecto que o destacava era o seu bom humor. Tenho lembranças de toda uma vida de anedotas, piadas e “stand up comedy” familiares. Ele era sempre a atração das ceias de Natal, o centro das atenções em tardes de domingo. O Tio Mateus fazia graça com tudo, brincava com tudo, e tinha uma capacidade absurda de fazer jogos de palavras, rir da própria situação ou, na boa era sem “mimimis”, colocar apelidos engraçados em todos os conhecidos, rindo literalmente da “desgraça” alheia. Sua capacidade de caricaturar a vida era descomedida. Tanto que teve muitos problemas com isso. O fato de brincar com tudo o tempo todo, por vezes comprometeu situações que deveriam ter sido tratadas de forma séria… Mas ele não conseguia, lá vinha outra piada, era mais forte do que ele! Ele teria tido muito sucesso como comediante, mas a vida o levou para outros rumos.

E isso dá um gancho para um terceiro aspecto que lhe era bastante inerente. O Tio Mateus era um empreendedor nato. O típico homem que nunca manteve todos os “ovos no mesmo cesto”, no sentido do seu ganha-pão financeiro. Devido a sua singular eloquência e personalidade irrequieta, sempre foi um bom vendedor, e boa parte da vida foi o seu próprio “patrão”, tendo certa dificuldade em receber ordens de outrem. E quanta coisa ele já negociou nessa vida! O Tio já teve um estabelecimento comercial, uma mercearia, uma lanchonete; já vendeu roupas, cosméticos, calçados, equipamentos, produtos de catálogos… Já foi vigilante, guarda-noturno, culinarista (era cada bolo sem glúten e sanduíche natural, huum…), mecânico, carpinteiro, “marido de aluguel”, auxiliar de enfermagem, atendente de loja, aplicador de injeção, cuidador de idosos, cuidador de pets, lavador de carros, motorista… O currículo dele daria um verdadeiro calhamaço! Ajudou no sustento dos seus seis filhos fazendo de tudo um pouco. E sabe o mais interessante disso tudo? Na minha vida corrida, muitas vezes eu precisei da ajuda do Tio Mateus para executar alguma tarefa. E vocês não têm a noção do capricho e da dedicação com que ele apertava um parafuso, desentupia um chuveiro, trocava o pneu de um carro, dispunha do ombro amigo ou proferia um sábio conselho.

Sabe aquela pessoa que você poderia contar a qualquer momento para qualquer coisa? Eu tive esse amigo ao meu lado. Meu carro sujava? Ele lavava. Meu chuveiro entupia? Olha ele lá com as suas ferramentas. Uma carona? Ele já estava estacionando. Uma opinião? Olha ele lá “todo ouvidos”. E o mais fantástico de tudo é que raramente eu precisava “pedir” alguma coisa. O feeling dele era incrível! Ele chegava na minha casa, olhava ao redor, e, enquanto eu atendia uma ligação telefônica ou ia ao banheiro, olha ele debruçado em meu tapete aspirando, vedando uma torneira que pingava, passando um “pretinho” no pneu do meu carro, passando white lub nas minhas dobradiças barulhentas, pregando um prego na parede, ou deixando a minha casa perfumada e enfeitada com algum produto que estava comercializando no momento.

E, falando nisso, eu nunca me esquecerei de um fato. Totalmente esgotada depois de uma reforma em minha casa, eu já nem tinha mais motivação e forças para conduzir alguns detalhes. Quem já construiu ou reformou sabe do que estou falando. Tudo o que eu queria era acabar logo com tudo aquilo. Já no fim da saga toda, em uma tarde tumultuada de trabalho, liguei para que o meu Tio pudesse ir até a minha construção e acompanhar a entrega da obra. Era dia dos últimos pagamentos, conferência de materiais, sobras, ferramental e detalhes que só alguém de muita confiança poderia fazer em meu lugar. Ele foi. E algum tempo depois me telefonou, dizendo que já estava tudo entregue e resolvido. Agradeci efusivamente e me despedi.

Chegando na construção (já residência), adentrei fazendo aquilo que todo mundo faz quando chega em casa depois de um dia cansativo de trabalho. Retirei os calçados, livrei-me dos livros e pertences pesados e dirigi-me ao banheiro para um aprazível banho. Ao entrar pela porta, parei repentinamente para ler um bilhete escrito em sua letra sempre muito bonita, em bom português, em um pedaço de papelão: “Nivinha, sei que está muito cansada para alguns detalhes, mas eu não poderia deixar o seu banheiro incompleto. Depois de liberar os “camaradas”, fui até o depósito de construção e adquiri algumas coisas que achei importantes e que você não levou em conta agora, mas sentirá falta depois. Aproveitei e já instalei tudo para você. Desencaixotei também os seus cosméticos, shampoos, sabonetes, toalhas e organizei tudo no banheiro, para que quando você chegasse pudesse tomar um merecido banho. Eu mesmo escolhi as peças instaladas, espero que esteja do seu agrado. Se quiser trocar algo, avisei no depósito sobre essa possibilidade e é só me dizer que faço pra você”. Minha reação? Enrolada em uma toalha, encostei-me na parede, arrastando as costas pelos azulejos recém instalados do banheiro até sentar no chão, e, abraçando as pernas, sacudi o corpo vagarosamente para frente e para trás, chorando copiosamente um pranto de cansaço, exaustão, felicidade, mas principalmente GRATIDÃO pelo meu amigo de sangue. Nenhum tipo de agradecimento era possível para retribuir tanto carinho, consideração e zelo da sua parte. Não era um dia especial, nem tampouco o meu aniversário. Era um dia comum e um gesto comum da parte dele. Esse era o meu Tio Mateus.

Alguns dias depois o reencontrei, tornei a agradecer com um grande abraço, e ouvi um comentário de algo estranho que havia ocorrido enquanto ele adequava o meu banheiro. “Nivinha, eu não estava conseguindo atarraxar os parafusos. Era como se as minhas mãos e braços não tivessem força para terminar o serviço. Daí eu senti tipo um esgotamento, um cansaço esquisito, e tive que me sentar. Depois fui lá e concluí, mas com muita dificuldade”. Ouvindo aquilo, sugeri que fizesse exames, poderia ser uma anemia ou uma deficiência de alguma coisa no organismo, que ele precisaria compensar ou suplementar. Esse fato ocorreu ao final de 2015. Naquele período, o Tio Mateus já estava com a sua fala comprometida, e já não se alimentava plenamente como antes. Explico abaixo.

Historicamente, contam os seus irmãos que o Tio vivia caindo e se machucando muito na infância. Era extremamente desastrado, e a sua pequena cabeça era alvo de galos, cortes e muitos pontos. Penso que, como o caçula, tentando acompanhar o ritmo dos “irmãos” mais velhos, vivia em tropeços e quedas. Na adolescência, sofreu um acidente de bicicleta que quase ceifou a sua vida. Na sequencia, em 1994 (desse eu me lembro bem) um outro acidente, na noite de Reveillon, o deixou em coma por mais de uma semana, com um enorme coágulo sanguíneo na cabeça. Voltando do coma, o Tio precisou reaprender a falar e a escrever; ele não se lembrava de palavras cotidianas: travesseiro, jarra, pão, telefone, o nome da esposa. Anos depois, seu bom humor foi novamente abalado por um atendimento médico de urgência. Foi levado ao Pronto Socorro do hospital que eu trabalhava na época com a pressão sanguínea elevadíssima, o que lhe trouxe complicações cardíacas e um AVC hemorrágico.

Depois do AVC o Tio teve a sua eloquência comprometida. Esperto que só, tentou reverter a situação da sua fala embolada escrevendo os seus pensamentos, textos e reflexões em folhas de caderno. O seu palato foi vagarosamente parando de funcionar, o que o impedia de pronunciar as palavras, engolir e se deliciar com as coisas gostosas que tanto apreciava. Foi aos poucos perdendo alguns de seus prazeres (falar e comer), mas o prazer de ajudar as pessoas, antes utilizando as suas mãos e o seu corpo todo, agora precisou ser substituído pela caneta e pelo papel. Enviava mensagens de amor, de paz e de reflexão para a igreja que frequentava, como um bom cristão, fazendo tantos olhos minarem de emoção. Aconselhava as pessoas dando recomendações através de registros no papel. Enquanto isso o seu corpo, seus músculos, seu vigor físico parecia estar sendo sugado por uma força estranha. E foi vagarosamente perdendo as suas bochechas rechonchudas e sua barriguinha saliente.

Na sequencia, o diagnóstico: ELA tinha te pegado. Esclerose Amiotrófica Lateral. Eu só A conhecia devido ao famoso físico Stephen Hawking escravizado em uma cadeira de rodas, e pela sua biografia “A Teoria de Tudo”. Sabendo que a Esclerose havia acometido o seu corpo, saí em busca de todo o tipo de informação possível. E pensava: “O Stephen é um dos mais consagrados cientistas da atualidade e convive há quase 50 anos com a doença. Isso pra você será “fichinha”, Tio, você tirará de letra”. Mas a realidade foi outra. ELA te enlaçou de forma rápida e irreversível, e tudo o que eu li sobre a progressão da doença estava acontecendo com você, de uma maneira ligeira demais. Aterrorizadora demais… Seus neurônios motores estavam morrendo aos poucos.

Quando você foi diagnosticado, ainda chegamos a conversar a respeito, em seu dialeto próprio que eu ainda entendia quase perfeitamente. Você já tinha pesquisado e lido o suficiente para entender que era irreversível: ELA não tinha cura. Você já sabia que era uma doença rara, um tipo de “loteria ao contrário”, e, degenerativa, iria paralisar aos poucos os músculos do seu corpo sem, contudo, atingir as suas funções cerebrais. Seu maior medo, e também o meu, era a chamada Síndrome do Encarceramento, uma rara condição, onde os movimentos do corpo inteiro são paralisados (com exceção dos olhos), mas as faculdades mentais se mantêm perfeitas.

Enfim, ELA te levou, Tio. Bem mais rápido do que todos nós podíamos imaginar. Não sou entendida do assunto, mas creio que o seu histórico de saúde, os acidentes, as sequelas, as tantas “cabeçadas da vida” foram responsáveis por acelerar todo o processo. E, em pouco mais de um ano após o diagnóstico, perdemos você. E eu, como disse lá pra cima, perdi quadruplicadamente: o irmão, o primo, o Tio, o amigo.

Mas esse texto não pode terminar triste, nem combina com você! Em nosso último encontro, você já fraco, trêmulo, bem magro e debilitado, mas super lúcido, ainda mantinha piadas na ponta da língua. Ainda acreditava que iria “sair dessa” e fazer o bem para tantos. Mal proferia as palavras, mas elogiou os meus fios de cabelo avermelhados e o meu vestido colorido. Ainda me ofereceu cosméticos novos, batons vermelhos e óleos massageadores. Em momento algum reclamou de sua nova condição física, mas manteve-se firme e bem humorado até o fim.

Enquanto esteve internado lutando contra ELA, eu tive um sonho. Não contei pra ninguém ainda.

No sonho, você estava gordinho e bochechudo como se manteve em boa parte da vida. Vestido de terno branco, carregava uma maleta grande, daquelas de ferramenta. Seus sapatos, também brancos, ofuscavam a sua passagem. Caminhando sorridente por uma trilha de flores, sacudia a maleta para frente e para trás, em contentamento, e aquela camadinha adiposa do seu ventre, saltando pelo cinto, tremelicava. De sua fronte, o sorriso branco-colgate que lhe era característico. Pássaros coloridos davam rasante em sua cabeça, e você, abaixando-se, esquivava de suas guinadas brincalhonas dando gargalhadas. A trilha acabou e bonitas casinhas começaram a aparecer pelo caminho. Você procurava por uma em especial. O sol brilhava soberano no céu anil, acabando de acordar. Era uma manhã de um dia azul.

Você pegou um papel no bolso lendo alguma coisa. Devia ser um endereço. Conferiu os números das casas, localizando aquela pela qual procurava. Localizou uma casa pequena, branquinha, sem cercas, bem convidativa. Roseiras e “boas-noites” de todas as matizes enfeitavam a entrada, em um jardim muito bem cuidado. Canteiros de temperos diversos ajudavam a compor a fotografia. Era uma típica habitação que a gente desenha quando é criança. Porta pequena, janelinha do lado, chaminé, telhado de “duas águas”, composto de níveas telhas envernizadas. Você parou de frente e silenciou por alguns minutos. Um gostoso vento passou e saracoteou os seus cabelos lisos, ralos e escuros. Do lado de fora daquela vivenda, um alvo cachorrinho circulava ao redor, querendo entrar, dando pulinhos e arranhando com as patas dianteiras a pequena portinha. Certamente era a casa dele.

Além do canino, você também observou galinhas e pintinhos. E também um galo que cantava o sol que amanhecia. Espichando o pescoço, observou que por detrás daquela morada havia árvores frutíferas: mangas, laranjas, acerolas, maçãs. Uma parreira fazia sombra em sua lateral. Continuando a observar, viu que uma lâmpada na parte externa da estrutura, tremeluzia por algum motivo.

Abaixando-se, colocou a sua grande maleta no chão e pegou uma ferramenta. Pelo que eu te conheço, você não poderia deixar aquela luzinha intermitente daquele jeito sem fazer algo para cessar aquele mau contato. Posicionou um pequeno banco de madeira que encontrou ali por perto, subiu sem dificuldades, e começou a trabalhar aquela irregularidade com os seus aparatos, até que a lâmpada, enfim, iluminou sem interferências. Nesse momento, notou que uma voz feminina do lado de dentro daquele domicílio cantarolava uma música suave, com letras do antigo Cantor Cristão.

Concluído o seu trabalho, já era quase hora do almoço, o sol no meio do céu. Você fechou a sua maleta e sentiu um cheiro conhecido. Na verdade, não um cheiro, mais dois aromas misturados. O seu olfato não poderia enganá-lo. Era o perfume de uma galinha caipira prontinha para ser servida! Dava para notar os temperos utilizados só de sorver profundamente aquele emanar dos deuses! Sua pancinha avantajada revirou-se de vontade e a sua boca salivou de desejo. E a segunda fragrância era de um café novinho, recém passado em um coador de pano. De quem mais poderia ser aquela morada?

De repente, a portinha se abre, o cachorrinho adentra rapidamente o interior e aparece a proprietária daquela pequena construção. Uma senhora de estatura pequena, também vestida de branco, enxugando as mãos em um alvo avental, um coque com grampos nos cabelos, óculos com grandes lentes arredondadas, sapatos de pisada dura e bicos finos, chaves tilintando nos bolsos das suas saias fluídas. Ela o vê, abre os braços acolhedores, sorri e diz com aquele sotaque pernambucano inesquecível:

– Meu filho querido! Quanta saudade, Mateus! Entre! Fiz o seu prato favorito para te receber. Seja bem vindo, meu caçula! Eu estava esperando você, menino luzido!

E lá fora, concluindo o pincelar do paraíso, um balanço de madeira que o vento remexia, pendurado em uma frondosa mangueira, prontinho para ser arremessado até o céu, com “um empurrão bem forte”… Não é, Tio?

[Nivea Almeida – 23.05.2018]