Escutemos Cássia

Não gosto de Cássia simplesmente pela qualidade sonora. É um som maravilhoso, claro. Contudo, como as ondas, que vêm e vão, a sua voz perpassou e perpassa minha vida, dando tom a cada ciclo.

As lembranças infantis trazem uma voz linda e marcante da MPB. A voz era feminina, e, nas capas de CD, as imagens eram tidas como "masculinas". Eu, que naquela idade achava muito mais legal ser menino que menina, não entendia muito bem, então guardava para mim o gostar por aquela descoberta.

"Malandragem" mexia tanto com a minha imaginação imberbe*! Eu pedia a Deus malandragem de verdade, para que eu tivesse coragem e nunca aceitasse ser uma mulher obediente. De repente estava lá eu, sem me cansar de passear por diferentes lugares, dirigindo meu carro com óculos estilo aviador, a cada vez que a música tocava.

Não sei como fizeram isso, mas me ensinaram o preconceito. Aprendi que Cássia Eller era sapatão. Baixava os olhos ao comentar "Ai, eu num gosto muito não..." Negativas por vergonha e proteção. Passou um tempo. Veio a "descoberta", que no caso é reconhecimento.

O sentido da palavra "sapatão" se ressignificara como se fosse um "Segundo Sol". Daí eu aprendi a tocar violão, justamente nessa época... Foi aí que o namoro coma música de Cássia começou.

A ideia pejorativa que eu levava comigo se dissipou. Seu som passou a ser fonte de orgulho, coragem e amor por si. As dores e vivências passaram a ter outra pulsação. A sensibilidade para a arte não nos deixa sozinha nesse mundo cão. Por exemplo, "Queremos saber" é canção que toca e me desperta a sensibilidade, fazendo com que eu me incline à reflexão. Outra de suas ondas que também me arrebata é "Por enquanto", que me inunda de melancolia... Pois amamos muito nessa vida, não é mesmo? Contudo, nem sempre nossa trajetória permite que os nossos estejam presentes fisicamente conosco.

"Luz dos olhos" era a canção que saía do meu peito quando a paixão me trazia luz aos olhos vidros. "All Star Azul" foi um sapato que tive até o momento de sua deterioração e consequente descarte cometido pela Mãe, música que também gosto muito de tocar. Fugindo um pouco do cunho de Nando Reis, cujo Cássia salvou as músicas... É massa ver como ela consegue dar sentido diferente às canções. "Vento no litoral" e "Vila do Sossego" são exemplos felizes de se mencionar, pois nos faz rasgar o óbvio de Cássia.

Sim, o óbvio de Cássia. Há muito que tive preconceito pela música da cantora por tê-la como simples intérprete de uma MPB meio pop. Nossa, depois que assisti um longa sobre sua história, senti vergonha. Com a contextualização, não tem como você não ficar pasma com o quanto ela tem mais bagagem do que muitos por aí. Seu som abarca blues, punk, mangue beat, samba, bossa e músicas que tratam de temas LGBT, em uma época e em um país em que a intolerância predominava completamente, comparados a hoje. Sem dúvida alguma, era bem mais difícil. Muitos não a reconheciam, mas inegável mesmo era o seu seu sucesso. Sua voz acoava. Sua voz ecoa.

Ela faleceu, mesmo que suas músicas ainda sejam ondas que se espalham, derramam e inundam em nós. Sua morte foi causada por infarto.

Minha tia acompanhava muito. Acho que era uma de suas únicas referências. E ela me conta sobre o dia de sua morte. Assim que foi anunciada, ela ligou para as amigas. Elas pararam tudo para se encontrar, beber e chorar por Cássia. Se reuniram para não acreditarem juntas, ela confessa.

"Morreu do coração" como se costuma falar. Penso que foi de tanto amar. Amou sem se prender ao apego e sem apreço à moral terrena.

Coração mundano.

Se entregou aos braços da música e deixou mulher e filho. De todas as formas: eterna Cássia.

Viva à Cássia Eller!

Imberbe*: Significa "sem seios", palavra rebuscada para expressar inocência referente ao início da juventude.