A ENIGMÁTICA CLARICE LISPECTOR (DA SÉRIE MULHERES QUE ME INSPIRAM)

Clarice, a ucraniana, brasileira, nordestina e carioca, é considerada por seus admiradores uma grande “experiência emocional”, segundo Benjamim Moser, biógrafo organizador do livro “Todos os Contos”.

Fugindo de tempos difíceis em seu país, “uma época de caos, fome e guerra racial”, a escritora veio da Ucrânia para o Brasil, e aqui morou em Alagoas, Recife e Rio de Janeiro, nessa ordem (por isso tantos adjetivos pátrios). Perdeu a mãe ainda criança e, anos depois o pai, de modo que antes de completar 20 anos era órfã de pai e mãe.

Aprendeu a ler e a escrever aos sete anos de idade, quando, então, passou a produzir pequenos textos, e aos 13 anos descobriu-se escritora, publicando seu primeiro livro uma década depois, o romance “Perto do coração selvagem”.

Sobre sua trajetória na literatura, Clarice se destacou por ser “uma mulher que não foi interrompida: que não começou a escrever tarde, que não parou por causa do casamento ou dos filhos nem sucumbiu às drogas ou ao suicídio.” (LISPECTOR, 2016, p. 14). Clarice trabalhou como jornalista (publicou crônicas no Jornal do Brasil, 1967 - 1973) e casou-se com um diplomata brasileiro, com quem viveu por alguns anos no exterior.

Viveu, portanto, como uma pessoa comum, sobressaindo-se por ser uma mulher com instrução, que conseguiu reunir a escritora, a mãe e a esposa, numa só Clarice. A condição de imigrante teria contribuído para seu comportamento diferente do padrão que se esperava da mulher da sociedade brasileira.

Em seus contos, escreveu sobre dramas da vida das mulheres, contemplando temas do cotidiano, como casamento, maternidade, filhos, mas de uma forma que lhe era muito peculiar. Suas personagens amadureciam junto com ela.

O que se lê de e sobre Clarice revela muito da autora, mas nada como assisti-la na entrevista concedida em 1977, pouco tempo antes de morrer, ao jornalista Júlio Lerner, Programa Panorama Especial, disponível no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=aIflu42J_U0).

A serenidade, a feição sisuda, as respostas diretas, alguns “eu não vou responder” ou “é segredo”, chegam a assustar. O sotaque (que não é sotaque, dizem, mas um problema de dicção, porque tinha a língua presa), num primeiro momento, pode causar certo incômodo. Mas há algo nela que transcende o aparente, revelando uma mulher espetacular. Assisti várias vezes à entrevista!

“Caótica, intensa, inteiramente fora da realidade” é a forma como o jornalista se refere à escrita de Clarice. Concordo, especialmente em relação ao conto “O ovo e a galinha”, que li e reli e não consigo apreender seu significado. Mas, para minha alegria, nem ela mesma consegue, segundo afirmou na entrevista, ao ser perguntada sobre seu caráter hermenêutico: “tem um conto meu que eu não compreendo muito bem: O ovo e a galinha”, declarando ser este, justamente, um dos que mais gosta, por ser um mistério para ela.

Clarice se dizia tímida e ousada ao mesmo tempo e para ilustrar, conta, na entrevista, que certa vez submeteu um de seus textos ao Diretor de uma revista, Raimundo Magalhães Júnior (posteriormente responsável por lançá-la como escritora): “eu tenho um conto, o senhor quer publicar?” Ela diz que, ao ler “um pedaço”, ele olhou pra ela e perguntou: “você copiou isso de quem?”, ao que ela respondeu: “de ninguém, é meu!”. E o texto foi publicado.

Ao ser perguntada em que momento se assumiu como escritora profissional, Clarice responde, lindamente (amo essa fala dela!): “Eu nunca assumi. Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou amadora e faço questão de continuar sendo amadora. Profissional tem uma obrigação consigo mesmo de escrever... ou então com o outro... em relação ao outro. Agora, eu, faço questão de não ser uma profissional pra manter minha liberdade.”

A Clarice escritora, concebida, pode se dizer, simultaneamente à alfabetização, declarou: “adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder. E, no entanto, cada vez que eu vou escrever, é como se fosse a primeira vez”. A escrita era uma forma de se sentir viva! Dias sem escrever, “períodos de hiatos, em que a vida fica intolerável”, era um terror para ela.

Referências

LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. Organizado por Benjamim Moser. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.

Maria Celça
Enviado por Maria Celça em 22/03/2019
Código do texto: T6604731
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