Inter vivos
"Você saberia meu nome
Se eu o visse no céu?
Agiríamos da mesma forma
Se eu o visse no céu?"
Céu. Inferno. Será mesmo que isso existe? Metafísica dantesca, não tenho dúvidas se a resposta for relativa ao mundo imaginário; o problema, porém, fica por conta do mundo real, em que sonhos e desejos nem sempre são realizados. Aliás, já reparou em quantos teve de abdicar ao longo da vida? Pois é, eu também. Mas deixei de enxergar isso de maneira ressentida ao perceber o seguinte: a vida não existe para (des)agradar ninguém em específico. Ou você acha mesmo que o sol nasce e se põe, que as nuvens despejam gotas e mais gotas d’água, que o vento sopra e tudo o mais simplesmente porque existe um ser tão especial entre nós que seja merecedor da atenção plena e absoluta da natureza? Egoísmo tem limite, convenhamos.
Independentemente disso, cada vez mais entendo a razão subjacente às crenças que apontam para a ideia de vida post-mortem, seja na figura de um espaço idílico e celestial, onde todos os nossos esforços mundanos seriam recompensados e haveria a definitiva expiação dos nossos pecados, seja no fenômeno da transmigração da alma, processo contínuo de evolução dos seres, que precisam passar por vidas e vidas de muito sofrimento até atingirem a iluminação, linha de chegada da escala evolutiva. O que há de atrativo nestes discursos, acredito, é o apoio e conforto que eles nos transmitem diante das inevitáveis perdas que enfrentamos ao longo da vida. Assim, sabendo da tendência humana a eternizar aquilo que lhe é bom e favorável – faço mea culpa, inclusive – a alternativa mais generosa é nos convencermos de que, ora ou outra, teremos de volta aquilo que perdemos, seja como for. E então viveremos felizes para sempre.
Tão balsâmico quanto ilusório acreditar nisso, eu diria. Porque, talvez, aquilo que perdemos, perdemos para sempre, inexistindo quaisquer oportunidades vindouras de um reencontro redentor. Ponto final mesmo, nada de reticências. Logo, pensar a vida post-mortem tal qual a cultura predominante pensa não faz o menor sentido para mim. O que não significa que eu não acredite nela, e aqui não é uma questão de crença, mas de certeza mesmo. Eu sei, assim como você sabe, que ela existe. Vou explicar melhor.
Já acompanhou a morte de alguém? Já participou de um velório, enterro ou sepultamento? Já frequentou algum lugar que deixou de ser frequentado por uma pessoa que faleceu? Pois bem, é exatamente disso que estou falando. Deparamo-nos com a morte em cada encruzilhada, e até que sejamos abocanhados por ela, continuaremos a tomar ciência de sua existência dia após dia. O mais intrigante é saber que somente a conhecemos quando estamos vivos, sendo completamente irrelevante a própria morte – os outros é que ficarão encarregados de dar a fatídica notícia aos demais. Em outras palavras: a morte é sempre algo que acontece na vida alheia. Sim, meu caro, minha cara, o mundo vai continuar girando depois que você partir. Não da mesma forma, devo admitir, mas as coisas e as pessoas, com o tempo, vão encontrar algum jeito de tocarem adiante a vida sem você. Eis a beleza e a certeza da vida post-mortem.
Enfim, este texto era para ser uma homenagem a meu avó, que faria aniversário hoje, caso não tivesse falecido há alguns meses. Mas, por mais difícil que seja aceitar isso, ele definitivamente não está mais entre nós, e não existe qualquer palavra que eu possa redigir-lhe agora, pois tudo a ser escrito daqui em diante é por ele, jamais para ele. Neste sentido, prestar-lhe homenagem atualmente é o mesmo que remeter uma carta a um endereço que só existe na minha cabeça mesmo. Resultado: a carta remetida vai retornar com a informação de que o destinatário não foi localizado.
Posso muito bem negar a verdade, dizendo que a culpa fica por conta do péssimo serviço prestado pelos correios e seus funcionários, almas inferiores desprovidas da capacidade de acessar o conteúdo transcendental que lhes revelo, mas não estou afim de me desgastar com algo que, eu sei, é uma tremenda lorota. A carta voltou porque o endereço passou a ser uma alucinação da minha parte. Este, talvez, seja o mal que igualmente acomete a todos aqueles que acreditam na alternativa mais generosa, os quais disseminam em larga escala um processo de esquizofrenia coletiva. Cuja motivação compreendo, repito. Ainda mais agora.
"Devo ser forte e prosseguir
Porque sei que não pertenço ao céu."