João Guimarães Rosa: cento e dez anos de luz e sabedoria
Prof. Arnaldo de Souza Ribeiro
Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.
João Guimarães Rosa. Nasceu em Cordisburgo - MG, no dia 27 de junho de 1908 e faleceu no Rio de Janeiro - RJ, no dia 19 de novembro de 1967. Foi médico, humanista, escritor e diplomata.
1. Introdução
João Guimarães Rosa notabilizou-se pela sua singular inteligência, pela intensidade de seus estudos, pela caridade que praticou e, sobretudo, pelas obras que escreveu. De sua inteligência luzidia, além das imortais obras, vieram também vários pensamentos e reflexivas citações. Entre eles: “Minas, são muitas. Porém, poucos são aqueles que conhecem as mil faces das Gerais.” Em paráfrase, pode-se afirmar: João Guimarães Rosa, também, são muitos.
Entre os muitos - João Guimarães Rosa - destacam-se: o neto, o filho, o pai, o avô, o médico, o militar, o diplomata, o amigo e o escritor.
Embora se saiba, em tudo que fez, pautou pela dedicação, civilidade, amor e sabedoria, mas, o que o imortalizou, foi a sua habilidade como escritor, ou seja, com sabedoria e singularidade deu nova e suntuosa roupagem à literatura brasileira. Desse modo, suas obras o tornaram um dos mais importantes e respeitados escritores brasileiros de todos os tempos e, se a morte não o tivesse colhido tão precocemente, seguramente teria sido contemplado com o Prêmio Nobel de Literatura, como queriam os seus editores alemães, franceses e italianos.
Seus contos, romances e poesias transluzem a alma e os sentimentos daqueles que viveram ou que admiram a ambiência do sertão mineiro e brasileiro, habitat predominante dos brasileiros no tempo em que ele viveu e escreveu. Naquele tempo o Brasil era um país essencialmente rural. A vivacidade e a originalidade de seus personagens dão ao leitor a sensação de que já os viram ou, mesmo, que já conversou com um deles.
Para vivificar e materializar a ambiência e o regionalismo que retrata em suas obras, ousou inovar a linguagem e inseriu várias expressões populares e regionais, inclusive com a criação de vocábulos a partir de apurado estudo semântico, de arcaísmos, invenções e intervenções.
Portanto, pode-se afirmar: para dar vida e originalidade aos seus personagens, João Guimarães Rosa cultuou, aprimorou e, sobretudo, enriqueceu o idioma português.
2. Nascimento, formação, casamento e filhas
João Guimarães Rosa nasceu em Minas Gerais, na cidade de Cordisburgo, em uma madrugada fria de inverno, no sábado do dia 27 de junho de 1908, e faleceu em uma ensolarada tarde de primavera, em um domingo, no Rio de Janeiro, dia 19 de novembro de 1967.
Ensina Vicente Guimarães:
Estava com dois anos e trinta e cinco dias de nascido. Levado fui à casa de minha irmã Chiquitinha, alvoroçado conhecer o meu primeiro sobrinho que, para alegria e prazer, havia chegado de madrugada. Era o dia 27 de junho de 1908. [1]
João Guimarães Rosa foi uma criança diferenciada. Desde cedo se comprometeu com os estudos e com as leituras. Ainda criança, manifestou especial interesse pelo estudo de outros idiomas. Existem registros e depoimentos de que iniciou o estudo do francês, antes de completar sete anos.
Neste sentido Enny Guimarães de Paula:
Já sabendo ler, começou a estudar francês sozinho, usando um dicionário e uma gramática em francês, presente de um viajante, amigo de seu pai, que o viu folheando aquelas revistas. Mais tarde, tendo chegado a Cordisburgo Frei Canísio Zoetmulder, holandês, Joãozito fez amizade com ele e pôde continuar os estudos de francês e iniciar-se no holandês sob orientação do frade. Ele gostava tanto das aulas, que aos sete anos já lia Les femmes qui aiment e traduzia as revistas francesas que sua mãe possuía. [2]
João Guimarães Rosa era estudante do curso primário quando se mudou para Belo Horizonte, para morar em companhia de seus avôs.
Concluído o curso primário se mudou para São João Del Rei, onde iniciou o curso secundário, no Colégio Santo Antônio e, por não se adaptar à cidade, logo retornou a Belo Horizonte.
Neste sentido Enny Guimarães de Paula:
Joãozito iniciou o curso primário na Escola Mestre Candinho, em Cordisburgo, e terminou-o no Grupo Afonso Pena, em Belo Horizonte. O secundário, cursou poucos meses interno no Colégio Santo Antônio, em São João del Rei e, por não ter se adaptado, voltou para Belo Horizonte e matriculou-se no Colégio Arnaldo, regido por padres alemães, onde estudou alemão. Nessa época, também aprendeu japonês com um nipônico, funcionário da Força e Luz. No correr de sua vida, aprendeu inúmeras línguas, era um poliglota. [3]
João Guimarães Rosa concluiu o curso secundário no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, com apenas 16 anos. Em seguida matriculou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, em 1925.
No dia 27 de junho de 1930 – dia de seu aniversário - casou-se com a jovem Lígia Cabral Pena. Quando do casamento, Lígia contava com apenas 16 anos. Desta união nasceram duas filhas: a escritora Vilma Guimarães Rosa e Agnes Guimarães Rosa.
3. Itaguara, Itaúna e exercício da medicina
João Guimarães Rosa concluiu o curso de medicina no dia 21 de dezembro de 1930 e iniciou sua carreira de médico no distrito de Conquista, hoje Itaguara, naquela ocasião, município de Itaúna.
Nesse sentido Ariosto da Silveira:
Mas o novo médico se hospedou, primeiro, na Pensão Lima, e depois foi para a casa dividida com o italiano Virgílio Brugnara. Casinha branca, modesta. Parede-meia. Pés direitos. Escadas de pedra. Era residência e consultório, que ficava na sala da frente, informa a filha escritora Vilma Guimarães Rosa, nascida em Itaguara. [4]
Itaúna àquele tempo era referência na região pela robusteza de suas fábricas de tecidos – Companhia de Tecidos Santanense e Companhia Industrial Itaunense – e, ainda, pela Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Souza Moreira, inaugurada no dia 19 de março de 1921.
Por ser o único Hospital da região e já contar com um conceituado corpo clínico, diariamente, vinham em busca de consultas, tratamentos e cirurgias pessoas de Bonfim, Carmo do Cajuru, Cláudio, Divinópolis, Itaguara, Itatiaiuçu, Mateus Leme, Pará de Minas, entre outros.
Integrava o corpo clínico da época Dr. Dorinato de Oliveira Lima e Dr. Antônio Augusto de Lima Coutinho, que se destacavam, pela competência com que exerciam a medicina, como um sacerdócio. Inclusive, foi o Dr. Antônio Augusto de Lima Coutinho que utilizou, pela primeira vez em Minas Gerais, a Raquianestesia, ou seja, injetou no canal medular uma ampola de Percaine, que trouxera do Rio de Janeiro, em uma paciente que tinha prenhez tubária e obteve êxito completo no tratamento. Por este e por outros tratamentos bem-sucedidos, Itaúna, seus médicos e o Hospital, ganharam fama a ponto de merecer, em suas mediações, uma parada na malha ferroviária, para embarque e desembarque de pacientes. Conhecida, até a desativação do transporte de pessoas, como: Parada do Hospital.
Pelos recursos à época existentes, pela nobreza de alma de João Guimarães Rosa - humanista convicto - além de encaminhar pacientes para Itaúna, muitas vezes os acompanhava e auxiliava os médicos locais nos seus tratamentos, em especial quando se fazia necessária alguma cirurgia. Desse modo, comprova-se, para júbilo e orgulho dos itaunenses, que João Guimarães Rosa frequentou e atuou na Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Souza Moreira.
Nesse sentido Antônio Augusto de Lima Coutinho:
Alta madrugada do dia 19 de março de 1931, acordei assustado com o buzinar insistente de um automóvel em frente de minha residência.
Levantei-me apressadamente e desci para atender a quem me chamara.
Era o meu prezado colega dr. J. Guimarães Rosa, de Itaguara que, em caminhão, conduzira, daquela localidade para aqui, uma mulher que às vinte e uma horas, suspeitada de infidelidade conjugal, pelo marido, fora por este alvejado, atingindo a bala o abdômen.
Chamado aquele colega, não vacilou um momento em aconselhar o transporte da vítima para esta cidade, providência esta que foi executada com grande presteza. [5]
João Guimarães Rosa, além de frequentar a Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Souza Moreira, tornou-se amigo dos médicos, serventuários e pacientes, a quem tratava com distinção e cordialidade, em razão de seu espírito humilde e evoluído. Dessas amizades, a mais profícua e duradoura foi com o Dr. Antônio Augusto de Lima Coutinho, que durou enquanto vida teve. Visitava com frequência sua residência e, sobretudo, sua biblioteca, com numerosos e diversificados livros para a época. Sabe-se que muitos dos livros lidos por João Guimarães Rosa, enquanto residia em Conquista, foram emprestados pelo Dr. Coutinho.
João Guimarães Rosa permaneceu aproximadamente dois anos em Conquista, onde conviveu intensamente com sertanejos – a quem visitava em suas casas -, ciganos e trabalhadores que construíram a rodovia Fernão Dias e, com eles, aprendeu novas expressões, seus usos e costumes. Vivências que lhes serviram de referência e inspiração para seus livros e personagens.
Neste sentido David de Carvalho:
Até mesmo com raizeiros e receitadores, João Guimarães Rosa passa a conviver em harmonia, numa atmosfera de respeito e compreensão: então faz-se amigo de Manoel Carvalho, residente nos Gentios, e que receita. João Guimarães Rosa compreende-o e julga-o de utilidade de uma gente marginalizada, distante do médico, da farmácia, quanto mais que Manoel Carvalho é bem intencionado e possui uma biblioteca sadia, fato mais engrandecido, se considerarmos a época e as circunstâncias. A par de compêndios de ensinamentos médicos, lá se encontram também vários livros de inspiração espírita: “A Grande Síntese” de Pietro Ubaldi, “Depois da Morte” de Léon Denis. [6]
Desse modo, comprova-se, João Guimarães Rosa, no exercício da medicina e na intelectualidade, transitou em todos os segmentos, ricos e pobres, letrados e analfabetos o que o fez completa e diferenciadamente e, sobretudo, misterioso.
Quando deixou Itaúna e Itaguara, sua proposta era de nunca se esquecer das terras e das pessoas que o acolheram como filho e irmão, por adoção. De igual modo, Itaúna e Itaguara, também, nunca o esqueceriam.
Nesse sentido Vilma Guimarães Rosa:
Em 1973, idealizada pelo escritor David de Carvalho, a programação cultural desta semana festiva foi dedicada à memória de João Guimarães Rosa, que de lá saíra há quarenta anos, mas prometendo se conservar “itaguaro-itaunense de coração”, para sempre. [7]
A programação cultural citada por Vilma Guimarães Rosa aconteceu, nos dias 10 a 16 de setembro de 1973, na qual ela esteve presente, ocasião em que se comemorou o aniversário de Itaúna e prestou-se homenagem a João Guimarães Rosa. Incluíram na programação estudos, amostras, debates, conferências sobre sua obra e concedeu-lhe “post mortem” a láurea de “Amigo de Itaúna”.
Acreditam [8] os itaunenses que João Guimarães Rosa, no conto “Minha Gente”, do livro Sagarana, editado pela primeira vez em 1946, onde por várias vezes cita o local denominado Calambau, zona rural de Itaúna. Assim o fez em homenagem à cidade de que não se esqueceria e que, de igual modo, nunca o esqueceu, registro:
- Ajunta, depressa, uns homens, para campearem o Cabaça. Espera aí... Ele para o lado da vila não ia, com medo dos soldados... Para o Marimbo, também não, pois é onde que moram todos os parentes dele, e ele sabe que a gente havia de querer ir procurar lá... O Calambau era o melhor lugar para um se esconder, mas o Xandrão Cabaça é burro, não acertava de ter pensado nisso, não. [9]
Prova insofismável que João Guimarães Rosa levava Itaúna e os itaunenses no coração, encontra-se na carta que escreveu para o Dr. Antônio Augusto de Lima Coutinho, quando em viagem a Assis e hospedou-se no Hotel Subásio.
Assis, 4 de novembro de 1949.
Meu caro Coutinho,
Em viagem de férias pela Itália, estou passando dia e meio nesta bela, estranha e mística cidade de Assis – toda impregnada do grande Santo. Vem-nos a ideia de que aqui é uma das portas, um dos lugares onde será mais fácil e direto o caminho da terra ao Céu. Pois bem, ontem, à tarde, na basílica de São Francisco, ganhei uma relíquia; depois, na Igreja de Santa Clara, uma freira, velhinha e boa como se já vivesse entre isto aqui e o Paraíso, mostrava-me a cripta, onde se vê o corpo, incorrupto, da primeira franciscana. Perguntou-me de onde eu era, de onde eu vinha, e, ao ouvir o nome Brasil, pôs-se a repetir, mansamente: - “ De tão longe... De tão longe... Precisa de levar também uma relíquia, para uma pessoa amiga...” Imediatamente, no instante mesmo, lembrei-me de Você, assim sem mais, sem outra explicação. Por que, logo naquele momento? Não sei. A saudade tem suas surpresas, e há muita coisa misteriosa, que a gente não sabe. Assim, decidi-me logo a enviar-lhe as piedosas lembranças, que, estou certo, hão de fazer prazer a Dona Dulce, cujas mãos beijo e de quem guardo sempre uma muito grata recordação. Como Você sabe, estou na Embaixada em Paris, para onde estou regressando, hoje, via Perúgia, Florença e Pisa. Lá, estarei sempre a postos, para o que Você desejar. Transmita um forte e saudoso abraço meu ao Ary, e minhas recordações à D. Nair.
E acolha outro grande abraço, muito amigo,
do seu
Guimarães Rosa.
Em conversa com o Professor e Confrade Benemérito Marco Elisio Chaves Coutinho, ele me disse que as relíquias, por vontade de seu pai Antônio Augusto de Lima Coutinho, encontram-se custodiadas com as Irmãs de uma Congregação de Freiras.
4. Mudança de Itaguara para Belo Horizonte e Barbacena
João Guimarães Rosa deixou Itaguara no ano de 1932, para servir como médico voluntário da Força Pública - atual Polícia Militar - durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Atuou como médico no setor do Túnel em Passa-Quatro. Durante esse trabalho conheceu o jovem médico Juscelino Kubitschek de Oliveira que, àquele tempo, era médico-chefe do Hospital de Sangue.
Posteriormente, por concurso, entrou para o quadro da Força Pública. No ano de 1933, mudou-se para Barbacena na qualidade de Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria.
Nesse sentido Vilma Guimarães Rosa:
Fomos morar em Barbacena, onde nasceu Agnes, minha irmã.
Nossa casa era bonita, aconchegante, perto do hospital e do quartel. Papai almoçava conosco, e eu costumava esperá-lo no portão, achando a maior graça vê-lo descendo a rua, lendo enquanto caminhava. [10]
Em Barbacena, além do exercício da medicina, também se preparou com afinco, para o concurso do Itamaraty, sendo aprovado com louvor.
5. Exercício da diplomacia e proteção aos judeus
João Guimarães Rosa ingressou na Carreira Diplomática por concurso público, realizado no ano de 1934, quando obteve o segundo lugar nos exames. Profícua, extensa e solidária foi a sua Carreira Diplomática, sendo: Cônsul-adjunto em Hamburgo – Alemanha, de 1938 a 1942; secretário de embaixada em Bogotá de 1942 a 1944; chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura no ano de 1946, no Brasil; primeiro-secretário e conselheiro de embaixada em Paris de 1948 a 1951; ocasião em que fora secretário da Delegação do Brasil na Conferência da Paz e representante do Brasil na Sessão Extraordinária da Conferência da UNESCO, ambas realizadas em Paris no ano de 1948. Foi delegado do Brasil na IV Sessão da Conferência Geral da UNESCO, realizada em Paris no ano 1949. Em 1951, voltou ao Brasil, sendo nomeado novamente chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura; depois chefe da Divisão de Orçamento no ano de 1953. Em 1962, assumiu a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras.
Quando João Guimarães Rosa exerceu o cargo de Cônsul-adjunto em Hamburgo, o mundo presenciava e penava com os horrores da Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, com as perseguições e as execuções sumárias de judeus. João Guimarães Rosa e sua segunda esposa Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, para auxiliá-los a fugirem para o Brasil, emitiam mais vistos do que as cotas legalmente estipuladas e, sobretudo, sem seguirem as formalidades legais e burocráticas exigidas, pois, sabiam eles, que o tempo necessário às burocracias poderia ceifar muitas vidas.
Neste sentido ensina Vilma Guimarães Rosa:
O jovem cônsul não hesitava em facilitar a fuga dos sofredores e oprimidos, mesmo sem a permissão oficial, que, fatalmente, chegaria tarde demais, ou talvez nunca.
O risco de ser punido pelo ministério de modo algum o preocupava. Temia apenas não conseguir salvar todas aquelas famílias inocentes, vítimas de um regime demente, que dependiam de sua generosidade e misericórdia, e cujo sofrimento o atingia diretamente a alma. [11]
Sabe-se que a coragem e a solidariedade praticada em Hamburgo, eram, simplesmente, a continuidade do que iniciara anos antes em Itaguara. Ou seja, àquele tempo, no exercício fraterno da medicina, partilhava da dor e do sofrimento dos fracos e humildes. Em Hamburgo, com coragem e determinação, junto à sua segunda esposa, Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, enfrentava os perigos e adversidades para proteger perseguidos e oprimidos e, sobretudo, compartilhava com eles seus sofrimentos.
Nesse sentido, Vilma Guimarães Rosa:
O jovem cônsul brasileiro, em seus relatórios, descria. Protegia aqueles que desejavam emigrar para o Brasil, judeus e não judeus. Sentia uma piedade enorme dos perseguidos.
Afinal, rompeu-se o que restava da paz. Durante a neutralidade, entre 1939 e 1942, aumentavam as responsabilidades do posto. Por amor à liberdade, meu pai sofria e servia. [12]
Os trabalhos, a coragem e a nobreza de suas almas foram reconhecidos. Em abril de 1985, João Guimarães Rosa e Aracy de Carvalho Guimarães Rosa foram homenageados pelo governo de Israel, ocasião em que o nome do casal foi dado a um bosque localizado ao longo das encostas que dão acesso a Jerusalém.
6. Busca de experiências e inspirações para suas obras e personagens
João Guimarães Rosa, mesmo depois de longo convívio em Belo Horizonte, já graduado em medicina, não perdeu o gosto pelas pessoas e pelos costumes do sertão. Em 1930, transferiu-se para Itaguara, onde iniciou o exercício da medicina. Naquela ocasião acercou-se das pessoas e dos usos e costumes do sertão e, ainda, por carta, sempre pedia informações de casos, pessoas e nomes ao seu pai, Florduardo Pinto Rosa.
No ano de 1952, João Guimarães Rosa integrou um grupo de vaqueiros, que, durante nove dias, percorreram 241 quilômetros, na condução de 180 cabeças de gado.
Neste sentido, Mariana Peixoto:
Foi assim que, entre 17 e 26 de maio de 1952, Guimarães Rosa empreendeu sua celebre expedição pelo sertão. A viagem inspiraria Corpo de baile, lançado no início de 1956, meses antes de sua obra-prima, Grande sertão: veredas, ser publicada.
Ao longo dos 241 quilômetros que dividem as fazendas Sirga (em Três Marias) e São Francisco (em Araçaí, nas proximidades de Sete Lagoas), Guimarães Rosa conheceu e conviveu com Manuelzão (o capataz), Zito (o guieiro e cozinheiro), Bindoia (o tocador de berrante), Tião Leite, Gregório, Santana e Pedro Baiano. Com os boiadeiros, transportou 180 cabeças de gado. [13]
Portanto, João Guimarães Rosa esculpiu e deu vida aos seus personagens, não na licenciosidade poética que a ficção permite e sim na ambiência dos fatos e nas vidas que relatou. Desse modo, suas obras derivam dos episódios que ficaram gravados em sua memória, enquanto criança em Cordisburgo e no exercício da medicina em Itaguara. Com destaque para o movimento da freguesia que acorria ao armazém de seu pai, somados aos relatos e explicações, que, ao longo de sua vida, recebia nas cartas enviadas por seu pai e nas viagens que fez pelos sertões de Minas e do Brasil.
7. Obras
1936: Magma
1946: Sagarana
1947: Com o Vaqueiro Mariano
1956: Corpo de Baile [14]: Essa obra foi desmembrada* em três volumes, a partir da terceira edição, em 1964, sendo:
1964: Manuelzão e Miguilim*
1965: No Urubuquaquá, no Pinhém*
1965: Noites do sertão*
1956: Grande Sertão: Veredas
1962: Primeiras Estórias
1964: Campo Geral
1967: Tutaméia – Terceiras Estórias
1969: Estas Estórias (póstumo)
1970: Ave, Palavra (póstumo)
2011: Antes das Primeiras Estórias (póstumo)
8. Ingresso na Academia Brasileira de Letras – ABL
João Guimarães Rosa, no dia 06 de agosto de 1963, foi eleito por unanimidade para ocupar a cadeira de número 2, da Academia Brasileira de Letras – ABL, na sucessão de João Neves de Fontoura. Cadeira que tem como Patrono Manuel Antônio Álvares de Azevedo.
Ciente de que seria tomado por uma forte emoção, adiou a cerimônia de posse por quatro anos. Portanto, o fez no dia 16 de novembro de 1967, ocasião em que foi recebido pelo Acadêmico Afonso Arinos de Melo Franco.
Em seu discurso, cuja erudição e sabedoria impressionaram a todos os presentes, chegou a afirmar: "… a gente morre é para provar que viveu.", era um prenúncio que sua despedida avizinhava-se.
E, lamentavelmente, seu prenúncio confirmou-se, pois, exatamente três dias depois, no dia 19 de novembro de 1967, em uma tarde de domingo, em plena primavera, João Guimarães Rosa faleceu na cidade do Rio de Janeiro, aos 59 anos. E o laudo médico atestou: infarto. Como a comprovar, aquele coração que praticou e comportou tanta bondade não resistiu à felicidade de integrar o olimpo dos escritores brasileiros e o conduziu, como ele predissera, ao encantamento. “O mundo é mágico. As pessoas não morrem, ficam encantadas.”
Sua morte precoce, além da lacuna deixada às letras brasileiras, também impediu sua indicação para o prêmio Nobel de Literatura, como pretendiam seus editores alemães, franceses e italianos.
9. Conclusão
Na madrugada do dia 27 de junho de 2018, que já se avizinha, Cordisburgo, Itaguara, Itaúna, Minas Gerais, o Brasil e mundo comemorarão os cento e dez anos do nascimento de João Guimarães Rosa, cuja vida e obras consubstanciam-se em incentivos e caminhos para construirmos um mundo melhor.
Humberto de Campos, com a sabedoria e perspicácia que lhes eram próprias, asseverou: “O melhor livro para crianças não será, acaso, aquele em que se conte a vida heroica dos grandes homens?”
Se vivo fosse e tivesse lido, as obras e a vida de João Guimarães Rosa, ele seguramente diria que o conhecimento da vida e a leitura de suas obras são imprescindíveis às crianças, jovens, adultos e idosos.
Para aferir a importância de João Guimarães Rosa, passado mais de meio século de seu falecimento, sua presença continua viva e a irradiar luz e esperança, pelo bem que fez, pelo modo que viveu, pelas obras que escreveu e pela coragem com que enfrentou os desafios que se lhe afiguraram durante sua profícua e corajosa vida, como ele mesmo sentenciou:
“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”
Certa vez o filósofo, filólogo, poeta e compositor alemão do século XIX, Friedrich Wilhelm Nietzsche, disse: “Até os mais corajosos raramente têm a coragem para aquilo que realmente sabem.”
Se Friedrich Wilhelm Nietzsche tivesse conhecido a forma que viveu e as obras que escreveu João Guimarães Rosa, seguramente diria: Eis aí um homem, que teve coragem para viver e fazer tudo o que sabia e o fez muito bem.
Pode-se ainda acrescentar acerca de João Guimarães Rosa que, além de fazer bem e com sabedoria, também o fez desinteressadamente e por amor ao próximo e isso se comprova quando: na madrugada do dia 19 de março de 1931 acompanhou uma pobre senhora que foi baleada pelo marido até o Hospital de Itaúna e o fez na carroceria de um caminhão e, quando Cônsul-adjunto em Hamburgo, mesmo com o risco de seu cargo, junto à esposa, expediram vistos, além da cota e sem o respaldo legal e o fizeram para preservar vidas de judeus desconhecidos.
Ademais, as histórias, as biografias, a família e os amigos asseveram: tudo o que fez em sua curta existência merece ser conhecido e reconhecido e, sobretudo, seguido.
Portanto, são justas, merecidas e necessárias as homenagens e reconhecimentos que se fazem a João Guimarães Rosa, o homem cuja vida e atos irradiam fraternidade e sabedoria, a ponto de conservá-lo entre nós, como ele mesmo preceituou: “Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.”
Desse modo, foi naquelas horas já antigas de sua existência, em que ele as dedicou à família, aos amigos, aos estudos, à prática da caridade e ao trabalho, que lhe propicia continuar a derramar luz e sabedoria cento e dez anos depois de seu nascimento, e, ainda, permanecer entre nós em forma de saudade, respeito, admiração, exemplo.
Itaúna, 28 de abril de 2018.
Artigo publicado no livro – O que a vida quer da gente é coragem: homenagem a João Guimarães Rosa, organizado pelo Prof. Arnaldo de Souza Ribeiro e Toni Ramos Gonçalves - Itaúna: Editora Ramos, 2018. p. 25 a 43 .
Notas:
1. PAULA, Enny Guimarães de. Ave, João. Brasília: Gráfica e Editora Brasil, 2010. p. 24 .
2. VICENTE, Guimarães de. Joãozito: a infância de João Guimarães Rosa. São Paulo: Panda Books, 2 ed., 2006. p. 27 .
3. PAULA, Enny Guimarães de. Ave, João. Brasília: Gráfica e Editora Brasil, 2010. p. 27 .
4. SILVEIRA, Ariosto. O baixo-sertão de Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 2002. p. 10 .
5. COUTINHO, Antônio Augusto de Lima. A messe de um decênio: algumas observações clínico cirúrgicas em dez anos de atividade profissional. Itaúna: Tipografia São João, 1932. p. 126.
6. DAVID, Carvalho. Investigação sobre a presença de Itaúna na obra de João Guimarães Rosa. Revista Bel’ Contos – Edição Especial. Belo Horizonte. Ano II – Nº 10. p. 07, 10 de setembro de 1973.
7. ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2014. p. 452.
8. Os acadêmicos e pesquisadores Dr. Antônio Fernando de Alcântara, Dr. José Maria Gonçalves e Dr. Raimundo Alves de Jesus, cordisburguenses e membros da Academia Cordisburguense de Letras – Guimarães Rosa - ACLGR, disseram que não conhecem, nas imediações de Cordisburgo, nenhum local denominado Calambau.
9. ROSA, João Guimarães. Sagarana. 31. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984. p. 215.
10. ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2014. p. 47.
11. ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2014. p. 215.
12. ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2014. p. 110.
13. PEIXOTO, Mariana. Memórias do sertão. Belo Horizonte: Jornal Estado de Minas - Caderno Cultura, 04.08.2015. p. 06.
14. PAULA, Enny Guimarães de. Ave, João. Brasília: Gráfica e Editora Brasil, 2010. p. 183.
Bibliografia
CAMPOS, Humberto. Diário Secreto. Rio de Janeiro: Editora O Cruzeiro S. A., 1954. v. 1
COUTINHO, Antonio Augusto de Lima. A messe de um decênio: algumas observações clínico cirúrgicas em dez anos de atividade profissional. Itaúna: Tipografia São João, 1932.
DAVID, Carvalho. Investigação sobre a presença de Itaúna na obra de João Guimarães Rosa. Revista Bel’ Contos – Edição Especial. Belo Horizonte. Ano II – Nº 10. p. 07, 10 de setembro de 1973.
PAULA, Enny Guimarães de. Ave, João. Brasília: Gráfica e Editora Brasil, 2010.
PEIXOTO, Mariana. Memórias do sertão. Belo Horizonte: Jornal Estado de Minas - Caderno Cultura, 04.08.2015.
ROSA, João Guimarães. Sagarana. 31. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984.
ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2014.
SILVEIRA, Ariosto. O baixo-sertão de Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 2002.
VICENTE, Guimarães de. Joãozito: a infância de João Guimarães Rosa. São Paulo: Panda Books, 2 ed., 2006.
* Arnaldo de Souza Ribeiro é Doutor pela UNIMES - Santos - SP. Mestre em Direito Privado pela UNIFRAN - Franca - SP. Especialista em Metodologia e a Didática do Ensino pelas Faculdades Claretianas - São José de Batatais - SP. Coordenador e professor do Curso de Direito da Universidade de Itaúna - UIT - Itaúna - MG. Professor convidado da Escola Fluminense de Psicanálise – ESFLUP - Nova Iguaçu - RJ. Diretor Financeiro e membro da Comissão de Direito Imobiliário da 34ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB - Itaúna - MG. Membro do Instituto Mineiro de Direito Processual - IMDP – Belo Horizonte, MG. Sócio efetivo da Associação Brasileira de Filosofia e Psicanálise – ABRAFP - Belo Horizonte – MG. Sócio Benemérito da Academia Cordisburguense de Letras Guimarães Rosa - Cordisburgo – MG. Membro do Grupo de Escritores Itaunenses e Presidente da Academia Itaunense de Letras – AILE, Itaúna – MG. Membro do Instituto do Direito de Língua Portuguesa – IDILP – Lisboa e da Comunidade de Juristas de Língua Portuguesa – CJLP – Lisboa, Portugal. Advogado e conferencista. E-mail: arnaldodesouzaribeiro@hotmail.com