O CENTENÁRIO DE MEU PAI

Lá pelos idos de 1918, no sul cearense, numa cidade pequena, porém decente (faço o destaque em itálico por tratar-se de expressão local), Crato, cercada de verde por todos os lados e onde tive a felicidade de nascer, ao pé da Serra do Araripe. Ali, onde havia um sitio de nome Buritis, uma família grande tradicional, católica, muito querida por todos que a conhecia, aguardava a chegada de mais um membro, que já tinha até nome: Moacir. Ele chegara exatamente no último dia de maio daquele ano. Como sempre, cada filho que chegava era festejado, inclusive com fogos, para que a vizinhança ficasse sabendo.

Aquele garoto lindo, saudável, crescia muito estudioso e trabalhador; ajudava nos serviços do sítio, que para mim parecia enorme! Tinha aquele cheirinho de frutas de tudo quanto era espécie, que se sentia a qualquer hora. Lembro-me do cantar dos passarinhos, em coro com o dos galos a cada amanhecer! Tinha até algumas criações, como se dizia naquela época: gado, cavalos, um pequeno rebanho de ovelhas, tudo era uma lindeza!

Moacir estudava e trabalhava, mas tinha muitos sonhos como todo adolescente. Queria ganhar o mundo e regar a vida com o suor do seu rosto. Foi aí que decidiu procurar um futuro mais promissor na capital do Brasil que, naquela época, era o Rio de Janeiro e ainda era a “cidade maravilhosa”. Tomou a decisão e foi em busca da realização dos seus sonhos. Era pouco mais do que um adolescente sem qualquer experiência, mas decidiu e conseguiu emprego na companhia de eletricidade. Certo dia, por uma fatalidade do destino, sofreu um acidente ao fazer a manutenção de um poste de iluminação, caindo de uma altura razoável, fraturando os dois pés. Levado ao hospital e, embora tenha sido bem cuidado por alguns parentes, com os quais morava - se não me engano, no Engenho de Dentro, - a lesão o obrigou a voltar pra casa.

Meu amado pai sempre dizia: “toda medalha tem duas faces”. Hoje eu posso imaginar porque ele me dizia isso, já que sua história representa um exemplo daquele dito popular.

Sua volta ao lar deve ter sido providenciada pelo destino, do contrário não teria ele, dois meses depois, conhecido uma linda normalista de 15 anos, que morava na cidade próxima, Juazeiro do Norte, também no Ceará, de nome Hercília, filha única de donos de engenho, criada com todo carinho pelos pais adotivos, já que muito pequenina perdera seus pais biológicos. E como era bonita! Eles se conheceram na festa de Nossa Senhora das Dores, padroeira da cidade de Juazeiro. Não trocaram uma palavra sequer, mas como dizem que os olhos são o espelho da alma, não conseguiram esconder o que sentiu o coração de cada um ao pulsar no mesmo ritmo.

Naquela época, embora tudo fosse mais romântico, também era mais complicado, por isso Moacir, mesmo estando apaixonado por Hercília, não conseguia falar com ela, mas mandava-lhe bilhetes da maneira que fosse possível. Até que um dia, sem conseguir mais guardar para si todo aquele amor, confessou ao seu pai que estava apaixonado e pretendia casar-se. Vejam só o que aconteceu: seu pai foi até a fazenda Timbaúba, do pai dela, seu Abel Sobreira, pedi-la em casamento em nome de seu filho. Qual não foi sua surpresa, quando o pai da jovem perguntou sobre as qualidades de Moacir. Seguiu-se o diálogo:

- Meu filho tem muitas qualidades, mas tem o maior defeito que o homem pode ter!

- Valha-me Deus! E que defeito tão grande será esse compadre?

- É o meu e o seu, homem!

Seu Abel, surpreso e meio assustado voltou a indagar:

- E qual é o nosso defeito, que eu não consigo me lembrar?

O velho Cícero, meu avô, pai de Moacir, também categoricamente respondeu: “É ser pobre, compadre!” e repetiu “É ser pobre!”. Então, se aquele era o maior defeito que tinha o apaixonado Moacir, não havia porque seu Abel negar-lhe a mão da filha tão amada; não sem antes falar com ela, que naquele exato momento estava no colégio.

Se hoje seu Moáça, como chamavam os amigos mais chegados, estivesse fisicamente entre nós, estaríamos comemorando seu centenário de nascimento, no dia 31 de maio do ano de 2018.

O mais interessante é que, um ano antes de partir, celebramos seus 65 anos aqui em Brasília, onde ele veio pela primeira vez, tendo nos proporcionado três felizes meses em sua companhia, tão carinhosa e inesquecível. Durante a festa desse aniversário, no momento de cortar o bolo, olhou pra mim com um sorriso lindo de pai amoroso e disse: “Minha moça, sabia que este será o último bolo de aniversário que o papai vai cortar!?” Eu, surpreendida com aquela frase tão convicta, contestei: que é isso, papai! Hoje é dia de festa. Veja quantos amigos vieram abraçá-lo e o senhor me sai com esta! E ele, fitando-me amorosamente nos olhos, disse: “escreva o que o papai está dizendo”. E continuou sorrindo, dando atenção a todos, o que lhe era peculiar. Isto foi em 31 de maio de 1984 e, em 16 de abril do ano seguinte, Deus o levou.

Fisicamente, sim, levou-o, mas ele sempre estará presente em nossos corações. Meu pai tinha o poder de atrair as pessoas com o olhar. Que saudade, meu pai!

Meu pai, seu Moacir, de saudosa memória, tinha uma fé muito grande em Deus e em “todas as Nossas Senhoras”, já que, segundo ele, todas elas são uma só e todas também nossa mãe. Em suas orações, sempre pedia-lhes que não permitisse nenhum dos familiares por perto na hora de sua partida, para que não levasse consigo a lembrança triste daqueles semblantes de quem tanto amava. Era só o que lhes pedia e mantinha a fé de ser atendido, caso merecesse.

O interessante é que, no dia anterior ao dia de sua partida, alguns fatos marcantes aconteceram. O primeiro, na noite do dia 15, quando minha irmã caçula, ao se encaminhar para a porta de casa com destino à faculdade, foi chamada por ele, que disse:

- Minha filha, você tem um tempinho pro papai?

- Estou de saída, pai.

- Canta Fascinação pro papai?

Ela voltou, sentaram-se os dois no sofá e cantaram juntos. Depois, foi com ela até o portão, esperou que dobrasse a esquina, acenou e entrou.

O segundo fato foi sua insistência em dormir no quarto de hóspedes, que há muito encontrava-se fechado. Todos na casa estranharam aquele manifesto inesperado e tentaram, sem sucesso, dissuadi-lo. Então, diante daquela insistência, minha mãe aprontou o quarto para que ele lá dormisse.

Na manhã seguinte, dia 16 de abril, logo cedinho, mamãe foi despertá-lo, levando sua vitamina preferida, de abacate. Ao abrir a porta do quarto, o viu caído ao pé da cama, tentou ajudá-lo a levantar-se, e naquela aflição, nem se deu conta da cruel realidade. Chamou um dos filhos para ajudá-la e foi aí que meu irmão Marcelo, que também já está com Deus, constatou que papai já não estava entre nós; partira na madrugada.

Por isso, embora possa haver a possibilidade de coincidência, creio que ele alcançou a graça tão almejada que tanto pedia a Deus e Nossa Senhora (ele sempre pedia isso a todo momento). E foi assim que adormeceu na terra e despertou no céu, conforme acreditava. Que Deus o tenha, meu amado e inesquecível pai.

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Hoje, celebramos o centenário de meu pai, enviando um buquê de muitas saudades e amor em forma de preces. Ele era muito católico. O mais interessante é que este dia ainda foi coroado com um dia tão santificado. Descanse em paz papai. Te amo.