MAE FLORZICA(Série Ode Em Casa) ROBERTA LESSA

UM DIA PARA MINHA MÃE? 
Logo de manhãzinha se inicia a preparação do dia já meio com friozinho de nova estação:
 
Toalha colorida embainhada caseiramente, açucareiro de vidro e o adoçante, pão de queijo estalando no forno, o café primeiramente servido à São Benedito antes de tudo e de todos, vela acesa no altar; pão, leite alvamente espumante, manteiga daquela marca antiga, frios e a garrafinha de água gelada na mesa bem em frente à cadeira de Dona Bela, uma mãe como tantas, mas nesse caso única por ser minha amada mãe. Lá fora o barulho das asas dos jornais chegando anunciando a hora do nosso dia realmente começar…
 
De xícara e pires na mão eu em companhia de Pri ( minha companheira – in memorian- de quatro enormes patas que tem certeza ser gente, o que também achamos ser fato e por isso a chamamos carinhosamente de gente canina ), seguimos para o quarto cantando nossa eterna canção de acordar mãe (essa só nos três conhecemos, aliás é também adaptada para acordar filho, coisa de mãe, vocês sabem bem como é isso).
 
De focinho quase no rosto de Dona Isabel, Pri observa e aguarda pacientemente o conhecido espreguiçar e o abrir daqueles iluminados e amados olhos esverdeamos para que tenhamos certeza de que o dia realmente começou, piadinhas à parte, quase que por encanto o dia se ilumina ainda mais.

Ela – Hummm… o que você está aprontando Roberta?
Eu – Hummm … não tá ouvindo o cheirinho do pão de queijo?
Ela – Só você mesmo…
 
E o olhar se perde em memórias que vem e vão dançando na mente da gente.

UM DIA PARA MINHA MÃE? 
 
E a tarde chega solta por entre cafezinho e pastéis feitos por Dona Isabel, e eu chegando em casa  do trabalho e ouvindo de imediato a “barulhada” da bicharada me anunciando antes mesmo de eu virar a esquina da rua. Pri me aguarda de rabo balançante no portão com suas unhas pintadas nada discretamente, hoje estavam escarlate. A baderna está montada quando disparo o dedo repetidamente na campainha fazendo meu povo pegar ainda mais fogo, e o cheiro de café coadinho na hora naquele coador de pano por minha mãe costurado entre zelos e falações fala ainda mais alto ao coração.
 
E desconversando Dona Bela fala de seu dia, a visita de uma amiga irmã querida, pessoas que pedem coisas na porta, vizinha que vem pedir conselhos, crianças que mandam beijos pra vó da esquina, essa é uma pequeníssima parte do tudo que é minha mãe.
 
E o pastel corre solto e junto com ele a saudade de nossa matriarca maior que muito nos ensinou, minha avó / mãe Estephania, que já se fora há alguns anos.
 
E haja recordações de minha querida Florzica que, de olhos marejados pede para que eu marque uma missa para sua mãe. E assim faço.

Eu – Oi mãe florzica, como vai sua pernoca?
Eu – Hummm… já tomou seus remedinhos hoje?
Eu – Ai, ai, ai… heim… cuida tanto dos outros que esquece de si mesma.


UM DIA PARA MINHA MÃE? 

Eu – Hoje é dia de consulta… vamos lá?
Ela – Fiz doce de mamão, acho que ficou bom, experimente, vou tomar banho e a gente já vai.
Eu – E eu sai atrás dessa linda, beliscando e cutucando deixando o sossego de minha mãe de lado mais uma vez.
 
Na verdade pequenas rotinas fazem parte do que somos, de nossas construções e nos alicerçam para que possamos seguir em frente independente de qualquer coisa que possa ocorrer e como sou privilegiada em ter essa coisiquinha que chamo de mãe e que muitas vezes me deu vida e me salvou: Tenho um anjo guardião em minha casa.
 
Na volta do médico passamos no mercado e finalizamos a tarde em uma sorveteria, eu limão com manjericão, ela flocos, a dona uma japonesa querida e muito simpática, já conhece a gente e sorri quando entramos e o papo corre solto por entre risos e lambidas quase que infantis no doce gélido néctar, eu devorando casquinha e minha mãe reclamando do tamanho enorme do sorvete que de propósito a dona da sorveteria caprichava e a casquinha se tornava um  verdadeiro cascão:  ela adora minha mãe.
 
Bengalinha em uma mão e a certeza de meu braço na outra, Dona Bela se apoia em sorrisos e passos cautelosos até o carro que aguarda estacionado feito carruagem dignamente ornada para esse momento de descontração.
Chegando em casa desço do carro, abro o portão e lá vem Dona Pri “rebolenta” da vida, morrendo de saudade como sempre. E eu atormentado ainda mais minha mãe ajudo ela entrar para dentro de nosso lar simulando que estou a fazer força descomunal por empurrar-la para dentro… risos e  mais risos  depois de uma bronquinha fingida dela..

Ela – Só você mesmo, assim eu caio… (risos).
Ela – Roberta, eu sou sua mala sem alça, não sou?
Eu – Claro, e eu sou sua alça sem mala, e tudo fica certo… (mais risos)

UM DIA  PARA MINHA MÃE?
 
Saio à noite para uma reunião e quando retorno, um cheirinho de sopa encorpada e quentinha me aguardando me faz perceber o quanto sou amada. Enquanto tomamos o aquecido néctar, Dona Bela comenta: “Se nosso Negrinho estivesse aqui ele ia gostar de comer com a gente. Será que ele está se alimentando? Que Deus o proteja e guarde lá na cidade grande. Este final de semana ele vem?”
 
Coloco dona Bela para falar com o neto pelo computador e acho graça pelo seu eterno estranhamento de minha mãe com as coisas da modernidade, chorando de emoção ela também ri das novidades diárias contadas pelo eterno rebento, já homem feito e que tanto ama…Até Dona Pri falou com meu filho pelo pc, tem cachorro que não se emenda, rsrs…
 
Com olhos chorosos de lá e de cá da tela terminamos o proseio virtual, tecnologia pode ser boa quando se sabe usar.

Ela – Você está se cuidando Nani?
Ela – Está tudo bem aí?
Ele – Claro vó, só estou com saudade de minhas duas gordicas… Um beijo.

UM DIA PARA MINHA MÃE? 
 
Jogamos um pouco de dominó antes de deitar, momento que também consigo ver o quanto esse ser se torna ainda mais precioso, agora é quase minha filha…Ao final da noite assistimos um filmezinho de Mazzaropi e entre risos e olhares, como sempre tenho que explicar algumas passagens da estória, pois Dona Bela às vezes se perde no enredo.
 
Olho para ela e percebo o quanto sou privilegiada e o quanto tenho de ternura por esse ser que tem em sua estória, memórias de bons e maus tempos, de desafios e vitórias, de força e principalmente de vida bem vivida apesar e com todos os altos e dos baixos.
 
Para essa minha mãe, todos os dias são dela, para ela e por ela, e não será instituído de forma alguma em nossos corações a aceitação da comercialização lucrativa em um só dia do ano, pois trezentos e sessenta e cinco dias não se constrói em uma data comemorativa oficializada socialmente e sim em momentos vividos segundo à segundo, pele à pele, cheiro à cheiro.
 
E eu só tenho a agradecer pela mãe “dez liciosa” que Deus me presenteou e que zelo com o mesmo carinho que fui por ela embalada no berço feito à mão pelo meu avô, maquinista da Sorocabana. Mas Seu Ângelo é outra memória que se alia aos meus afetos, deixo para outro momento.

Eu – Boa noite Dona Belinha, dorme com Deus…
Ela – Boa noite minha filha que Deus a abençoe…
Ela – Você fechou o portão?

UM DIA PARA MINHA MÃE?
 
Escrevi este texto em maio de 2001 e ache pertinente re publicá-lom espero que voce goste...
Roberta Lessa
Enviado por Roberta Lessa em 08/05/2018
Reeditado em 08/05/2018
Código do texto: T6330899
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