Setúbal - Portugal

Querida...

Sou teu por tudo, pelo tempo e espaço...

E, assim, a sina é sempre a que sorri...

Sou todo o tempo insano e sossegado

em louca mutação de amor infindo.

Sou nobre, alguém me disse, e já nem creio,

pois eu me curvo sempre que preciso,

a fim de me aninhar em teu abraço

e digo que sou menos do que dizem,

mas se é pra ser e ser só teu, o sou...

Quem poderá dizer, ó Poesia,

qual é o teu segredo de conquista?

A tua sedução, como se dá?

Tu pões algema branda e desejada

na mão de seres cheios de paixão

por essas aliadas, as palavras,

que mais parecem ter vontades próprias

e vão dizendo coisas do Universo...

E tu, rainha, algema-te ao poeta...

Teus feitos são tremendos, Poesia!

Bocage, a quem chamavam d’indomável,

foi um dos mais ilustres dos cativos

e servos mais fiéis desse teu reino

que descortina em letras a verdade

a fim de despertar plebeu e nobre

pro fato de que somos seres vivos

na justa caminhada de aprender

a conjugar o verbo humanidade...

Eu sei: te manifestas soberana

na música que, mãe de toda a Arte,

eleva lá pros cimos: Paraíso...

Quem pôde ouvir cantar Luísa Todi,

feliz, testemunhou pequena ave

em belo gorjear arrebatante!

Cantora para todas as centúrias...1

Querida! Eu sei que tu estavas nela

e com a tua destra a conduzias...

1 Como a definiu Antoine Reicha, em seu "Tratado da Melodia".

Em ti muitos fizeram boa Escola

sem mestres ou riqueza pra comprar

a tua essência, cara amiga minha!

Não foi assim com ele, o Calafate

que, sendo carpinteiro analfabeto,

fez as palavras serem quais imagens?

O velho Cantador setubalense

que dia e noite a ti se apegou

compondo o que chamamos Poesia...

Eu vejo a tua mão, querida minha,

na Arte de observar, documentar

os fatos para as gerações futuras

porque quem não conhece a própria origem

não tem como saber pra onde vai...

João Carlos de Almeida, o advogado,

foi firme, forte, qual forte Carvalho,

e célere em guardar bem a História,

e tu o impulsionavas, Poesia...

Rainha minha, lembras o poeta

Sebastião Artur Cardoso Gama?

A quem tu inspiraste, protetora,

a fim de pleitear por nobre Causa

da Serra da Arrábida, que mãe,

protege belas praias e o Convento...

A Carta2 do poeta e professor,

que foi-se jovem, deu bom resultado

contigo por guarida, Poesia...

2Uma carta sua, enviada em agosto de 1947, para várias personalidades, a pedir a defesa da Serra da Arrábida, constituiu a motivação para a criação da LPN (Liga para a Protecção da Natureza), em 1948, a primeira associação ecologista portuguesa.

E por falar na bela Natureza -

aos olhos de quem vê com o cuidado

de não deixar passar cada detalhe -

a tua marca nela é indelével!

Quem nunca viu um belo pôr do Sol,

um quente amanhecer à beira mar,

as árvores floridas sob o vento,

as cãs de quem viveu e foi longevo

e não te viu, também, ó minha Dona?

Tu vês querida, como eu penso em ti?

Abrindo os olhos cedo, de manhã,

te sinto, qual olor doce no ar,

que vai se propagando ao derredor

e sem esforço fazes que eu consiga

deixar a dor de lado e labutar

num tento de fazer mundo melhor

a fim de que futuras gerações

não percam as pegadas que tu deixas...

Ao fim do dia, quando vem a noite,

meu corpo extenuado ainda te sente

e lembro com cuidado cada fato,

tentando recordar do que eu errei

pra por a minha a mente a questionar

acerca do que posso corrigir,

pois tu, minha mentora e conselheira,

qual luz que brilha mesmo em densas trevas,

cochichas: “ - Amanhã, tente outra vez”!

Nem quando o sono vem eu me desligo

da tórrida influência que tu tens

por sob esse meu eu que, sendo teu,

se deixa possuir em sonho bom

e vê repouso nesse teu regaço

que, tépido, apraz, pois me protege...

Fechando os olhos vejo-te melhor!

És como uma figura de mulher

com formas que acelera o coração...

Teus olhos me perscrutam toda a alma;

desnudam o meu ser, que te pertence,

sem medo ou traço algum de vão pudor

e deixa-se explorar completamente

sentindo a tua essência percorrer

a tez e cada parte do que sou!

Teus olhos são dois lumes de energia

que paralisa o tempo e me transporta

ao mítico Jardim de Shangri-lá!

Tu ris e vejo o Sol de muito perto...

Calor que não consome e muito apraz!

Um riso confiante e tão sincero

que dá melhor sentido à liberdade!

Teus lábios, duas fontes de carmim;

convites convincentes para o toque

que faz mexer meu corpo num tremor

capaz de sacudir o Universo,

moldando toda a vida a ti, Senhora...

A tez em ti é luz e tuas curvas

demonstram ser o termo perfeição

aquém do que tu és, do que inspiras,

pois não te prendem rótulos, modismos

ditados por tendências sazonais!

Tem muito a se apalpar teu conteúdo...

Tens seios que apontam para o céu

deveras desejáveis, ambrosia

capaz de fazer anjos salivarem...

Eu sinto as tuas mãos em minha nuca...

Carinho que não dá pra expressar!

Que puxa a mim pra mais perto de ti

dizendo bem baixinho: “- Vem provar”!

Não é convite! É ordem! Tu me tens.

Eu bebo dos teus lábios, Poesia!

Meu corpo se faz um ao corpo teu;

relâmpagos clareiam sem parar...

Ribombam mil trovões... Eis apogeu!

Assim é que engravidas quem escolhes!

E logo ao despertar sente na mente

desejo de se abrir e por pra fora

sementes que plantaste, minha amada!

Assim nascem pinturas magistrais

quais as de João Vaz e do Francisco

Augusto S. Flamengo de Setúbal

e tantos outros mestres dos pincéis!

Teus frutos são infindos, Poesia!

Não há limites para quem é teu!

Deslizas pelas mãos de quem esculpe

em barro, ferro, bronze, na madeira

ou em outra matéria que moldada

aos poucos se transforma com destreza

em formas atrativas ao olhar,

de modo que tu levas o escultor

ao nível de quem cria a perfeição

que fala sem dizer qualquer palavra!

Contigo não há belo, não há feio!

Ao menos não segundo esses padrões

que julgam sem levar em conta a Arte!

Querida minha dás razão à vida

e quem te reconhece é mais feliz!

Tem alma mais sensível; valoriza

o dom de quem faz coisas diferentes

e torna essa existência enriquecida

de cores, formas, cheiros e sabores...

O queijo de Azeitão é maravilha!

Quem come fecha os olhos e te sente

em forma de sabor indescritível

que traz à tona um forte desejar

de dar pausa no tempo para sempre!

Talvez os que produzem nem percebam

que são, ó Poesia, servos teus

fazendo acontecer, de forma rara,

a Arte de comer com mais prazer...

Não tento imaginar como seria

se tu não existisses... É impossível!

Tu és a liga que faz suportável

a vida nesse mundo, assaz, injusto.

Tu és fragrância boa de inspirar;

és paz na temerária tempestade...

Metade em mim és tu e outra metade

anseia submeter-se ao teu domínio,

juntar meu eu a ti pelo infinito...

Ronaldo Rhusso