Um amigo singular
Ontem, dia 19, mais um amigo desses de primeira linha partiu para o andar de cima, chamado pelo Criador, mostrando-nos que a fila está andando e que em breve todos estaremos de novo reunidos, como soe ocorrer nesses fatídicos meses de agosto. Turene Cysne de Souza nos deixou e, como era de se esperar, deixou também uma lacuna junto a todos os amigos, companheiros de vida, de copo e de pescarias e que o conheceram. Realmente uma perda inestimável, de que somente tive conhecimento no domingo à tarde, quando já sepultado.
Somos amigos há setenta anos, desde nossos primeiros passos pela Rua do Quartel, depois Paraíba e hoje pomposamente chamada de Presidente Vargas neste pequeno rincão do Espírito Santo, Mimoso do Sul, guiados pelas mãos diligentes de D. Abigail Cysne e D. Zoraïde (assim mesmo, com trema sobre o “i”, de que não abdicava), nossas mães.
Entre as lágrimas que ora correm céleres por meu rosto, fruto da emoção da perda de mais esse amigo querido e de que era distanciado em nossa rua por somente duas casas, a de Seu Weston e D. Wanda, pais de Nilo, Vanira e Eliane e a de Vovô Daminhas e Vovó Ambrozina. Dentre as lembranças mais antigas, a vez em que cai de cabeça no chão desde a carroceria do imponente caminhão de seu pai, o que talvez explique porque sempre fui meio aloprado, como maliciosamente diziam, chegando mesmo a desmaiar e ser atendido por seu eficiente avô, Dr. Cysne, que para desespero de meus pais vaticinou que aquilo "não era nada, pois Maria também tinha levado tombo semelhante e estava ali viva para confirmar", com o que ela aquiesceu, tranqüilizando a todos; e no dia seguinte, após recuperar-me, continuamos a brincadeira de pique, subindo e descendo da alta carroceria, indiferentes ao ocorrido.
Também como se a um filme que projetado em minha mente, vejo Turene em alta velocidade por nossas calçadas a bordo de seu imponente velocípede e levando à garupa sua irmã Jussara, enquanto seus amigos tinham que se contentar com os congêneres sem aquele acessório, uma cadeira extra, ou, quando muito, poderem dar uma voltinha no dele que lhes foi emprestado. Em seguida, vejo-o portando um belíssimo cinturão duplo com dois imponentes revólveres de espoletas, ambos com os cabos brancos de plástico em que haviam duas cabeças de touros esculpidas, presentes de Natal de seus pais, iguais aos de Hopalong Cassidy e Roy Rogers. Assim, devidamente armados, íamos para as sessões de matinée aos domingos, inicialmente no cinema localizado na cabeça da ponte do Albano e depois em nossa própria rua, quando inaugurado o Cine São José, hoje Teatro Stênio Garcia.
Apesar de seu físico até então esguio e atlético e depois aviltada pela proeminente barriga decorrente das tantas cervejas, da mesma forma que eu, Turene não era muito afeto a esportes, resumindo nossas intervenções às fotografias em preto e branco até hoje carinhosamente guardadas, fazendo poses junto a uma bola de futebol e defronte à casa de Seu Zezinho Dentista e com a participação de Nando (Fernando Marçal), Puxada (Sérgio Vereza), Mandioca (Rogério Castro), e Nilo (Moreira), além de mim e Turene, lembranças de um tempo de crianças felizes e irresponsáveis.
Já em nossos tempos de adolescência, antes de ir para o Ginásio, Turene cumpria seus compromissos perante seu avô, cuidando diligentemente da mula Calçada, picando com a catana a cana colhida no alto do morro atrás de sua casa e misturando-a com o milho para servi-la, afinal era o combustível do veículo que permitia levar Dr. Cysne a todos os recantos para o atendimento médico dos inúmeros doentes, o que ele fazia sempre, quase que diariamente; quando não o fazia, em ocasiões mais graves, os atendia diretamente sobre a calçada de sua farmácia, auxiliado por Dona Maria e algumas vezes ainda pelo próprio Turene, além de ser incumbido da lavagem e esterilização dos vidros comprados por seu primo, Klinger, utilizados para a embalagem dos remédios que seu avô manuseava.
Seu nome, completamente unusual, decorria talvez de homenagem que seu avô quis prestar ao notório filósofo e sociólogo francês Alain Tourraine, conhecido por sua obra dedicada à sociologia do trabalho e dos movimentos sociais e por ter sido o pai da expressão "sociedade pós-industrial", com imensa popularidade na América Latina na década de quarenta, período em que seu homônimo nasceu ou, de outra forma simplesmente mais uma de suas excentricidades, já que, dizem, se incumbiu pessoalmente de definir as alcunhas de cada um de seus netos, Nicodemos, Pinard, Marco Aurélio, Laineck, Eumênes e Tércio em homenagem a proeminentes personagens da história universal e comprovando sua propalada erudição ou quem sabe à antiga província de Turaine, originalmente Turena e cuja capital era a cidade de Tours.
Conhecida como "O Jardim da França", Turena era o retiro dos reis no fim da Idade Média e Renascença, com seu controle dado aos angevinos, que se tornaram reis da Inglaterra e posteriormente transformada em ducado real. A região de Touraine tem a fama de ser o local onde se fala o francês mais puro e sem sotaque. Lá, Honoré de Balzac, nascido em Tours, pagou seu tributo ao centrar nesta região um de seus romances e também o famoso Leonardo da Vinci viveu os últimos anos da sua vida em Amboise e Joana d’Arc começou sua caminhada para a libertação de França do jugo inglês. Concluindo em contos de fadas, convém saber que o Castelo de Ussé foi, segundo consta, o local inspirador para o belo conto de a A Bela Adormecida.
Nós nos distanciamos cedo, já que fui trabalhar em cidades distantes e Turene ingressou na Faculdade de Engenharia Florestal, junto com Irezê, passando alguns anos sem nos vermos, exceto por ocasião das festividades de nossa cidade, quando nos reencontrávamos. Em uma dessas oportunidades, mais uma vez Turene comprovou sua singularidade ao procurar por um médico que atendesse sua esposa durante as festas, acometida por uma crise de hemorroidas. Disponível, encontrou somente Marcelo, oftalmologista, amigo comum, a quem requereu que a consultasse àquela hora da noite, onde se deu o seguinte diálogo que procurarei reproduzir com a maior fidedignidade:
- Mas como logo eu, Turene, que sou oftalmologista e já são quase dez horas da noite?
- Ora, Marcelo, você não é médico que cuida dos “ói” (olhos)dos outros? Então vamos lá, prá você olhar o “oi” do cu de minha mulher...
E o carregou pelo braço pra casa, para atendê-la...
Das poucas vezes em que nos reencontramos longe de nossa cidade, o fizemos em Campo Grande, MS, a primeira há anos, quando lá fomos para pescar e caçar jacarés. Turene era o Superintendente Regional do IBAMA e nos acolheu e direcionou na compra dos tipos de anzóis, iscas e apetrechos que deveríamos usar e mais recentemente em um churrasco em casa de parentes naquela localidade, ocasião em que passamos longas horas matando as saudades dessa terra enquanto saboreamos a boa pinga que havia levado.
Assim era esse grande amigo que se foi de forma prematura e que certamente onde estiver estará contagiando todos com sua espontaneidade, com suas histórias hilárias e com sua risada sonora e expressiva, além de utilizando essa qualidade que lhe era inerente e única – a de atribuir apelidos jocosos a quem dele se aproximasse, os quais, mesmo que sem qualquer conexão com nada acabavam “pegando”, talvez por sua insistência em repeti-los à exaustão.
Descansa em paz e que outros tantos o acolham em sua caminhada. Em breve nos veremos e beberemos da boa pinga que levarei. Um abraço saudoso do amigo
Nicolau (como era por ele chamado)
Somos amigos há setenta anos, desde nossos primeiros passos pela Rua do Quartel, depois Paraíba e hoje pomposamente chamada de Presidente Vargas neste pequeno rincão do Espírito Santo, Mimoso do Sul, guiados pelas mãos diligentes de D. Abigail Cysne e D. Zoraïde (assim mesmo, com trema sobre o “i”, de que não abdicava), nossas mães.
Entre as lágrimas que ora correm céleres por meu rosto, fruto da emoção da perda de mais esse amigo querido e de que era distanciado em nossa rua por somente duas casas, a de Seu Weston e D. Wanda, pais de Nilo, Vanira e Eliane e a de Vovô Daminhas e Vovó Ambrozina. Dentre as lembranças mais antigas, a vez em que cai de cabeça no chão desde a carroceria do imponente caminhão de seu pai, o que talvez explique porque sempre fui meio aloprado, como maliciosamente diziam, chegando mesmo a desmaiar e ser atendido por seu eficiente avô, Dr. Cysne, que para desespero de meus pais vaticinou que aquilo "não era nada, pois Maria também tinha levado tombo semelhante e estava ali viva para confirmar", com o que ela aquiesceu, tranqüilizando a todos; e no dia seguinte, após recuperar-me, continuamos a brincadeira de pique, subindo e descendo da alta carroceria, indiferentes ao ocorrido.
Também como se a um filme que projetado em minha mente, vejo Turene em alta velocidade por nossas calçadas a bordo de seu imponente velocípede e levando à garupa sua irmã Jussara, enquanto seus amigos tinham que se contentar com os congêneres sem aquele acessório, uma cadeira extra, ou, quando muito, poderem dar uma voltinha no dele que lhes foi emprestado. Em seguida, vejo-o portando um belíssimo cinturão duplo com dois imponentes revólveres de espoletas, ambos com os cabos brancos de plástico em que haviam duas cabeças de touros esculpidas, presentes de Natal de seus pais, iguais aos de Hopalong Cassidy e Roy Rogers. Assim, devidamente armados, íamos para as sessões de matinée aos domingos, inicialmente no cinema localizado na cabeça da ponte do Albano e depois em nossa própria rua, quando inaugurado o Cine São José, hoje Teatro Stênio Garcia.
Apesar de seu físico até então esguio e atlético e depois aviltada pela proeminente barriga decorrente das tantas cervejas, da mesma forma que eu, Turene não era muito afeto a esportes, resumindo nossas intervenções às fotografias em preto e branco até hoje carinhosamente guardadas, fazendo poses junto a uma bola de futebol e defronte à casa de Seu Zezinho Dentista e com a participação de Nando (Fernando Marçal), Puxada (Sérgio Vereza), Mandioca (Rogério Castro), e Nilo (Moreira), além de mim e Turene, lembranças de um tempo de crianças felizes e irresponsáveis.
Já em nossos tempos de adolescência, antes de ir para o Ginásio, Turene cumpria seus compromissos perante seu avô, cuidando diligentemente da mula Calçada, picando com a catana a cana colhida no alto do morro atrás de sua casa e misturando-a com o milho para servi-la, afinal era o combustível do veículo que permitia levar Dr. Cysne a todos os recantos para o atendimento médico dos inúmeros doentes, o que ele fazia sempre, quase que diariamente; quando não o fazia, em ocasiões mais graves, os atendia diretamente sobre a calçada de sua farmácia, auxiliado por Dona Maria e algumas vezes ainda pelo próprio Turene, além de ser incumbido da lavagem e esterilização dos vidros comprados por seu primo, Klinger, utilizados para a embalagem dos remédios que seu avô manuseava.
Seu nome, completamente unusual, decorria talvez de homenagem que seu avô quis prestar ao notório filósofo e sociólogo francês Alain Tourraine, conhecido por sua obra dedicada à sociologia do trabalho e dos movimentos sociais e por ter sido o pai da expressão "sociedade pós-industrial", com imensa popularidade na América Latina na década de quarenta, período em que seu homônimo nasceu ou, de outra forma simplesmente mais uma de suas excentricidades, já que, dizem, se incumbiu pessoalmente de definir as alcunhas de cada um de seus netos, Nicodemos, Pinard, Marco Aurélio, Laineck, Eumênes e Tércio em homenagem a proeminentes personagens da história universal e comprovando sua propalada erudição ou quem sabe à antiga província de Turaine, originalmente Turena e cuja capital era a cidade de Tours.
Conhecida como "O Jardim da França", Turena era o retiro dos reis no fim da Idade Média e Renascença, com seu controle dado aos angevinos, que se tornaram reis da Inglaterra e posteriormente transformada em ducado real. A região de Touraine tem a fama de ser o local onde se fala o francês mais puro e sem sotaque. Lá, Honoré de Balzac, nascido em Tours, pagou seu tributo ao centrar nesta região um de seus romances e também o famoso Leonardo da Vinci viveu os últimos anos da sua vida em Amboise e Joana d’Arc começou sua caminhada para a libertação de França do jugo inglês. Concluindo em contos de fadas, convém saber que o Castelo de Ussé foi, segundo consta, o local inspirador para o belo conto de a A Bela Adormecida.
Nós nos distanciamos cedo, já que fui trabalhar em cidades distantes e Turene ingressou na Faculdade de Engenharia Florestal, junto com Irezê, passando alguns anos sem nos vermos, exceto por ocasião das festividades de nossa cidade, quando nos reencontrávamos. Em uma dessas oportunidades, mais uma vez Turene comprovou sua singularidade ao procurar por um médico que atendesse sua esposa durante as festas, acometida por uma crise de hemorroidas. Disponível, encontrou somente Marcelo, oftalmologista, amigo comum, a quem requereu que a consultasse àquela hora da noite, onde se deu o seguinte diálogo que procurarei reproduzir com a maior fidedignidade:
- Mas como logo eu, Turene, que sou oftalmologista e já são quase dez horas da noite?
- Ora, Marcelo, você não é médico que cuida dos “ói” (olhos)dos outros? Então vamos lá, prá você olhar o “oi” do cu de minha mulher...
E o carregou pelo braço pra casa, para atendê-la...
Das poucas vezes em que nos reencontramos longe de nossa cidade, o fizemos em Campo Grande, MS, a primeira há anos, quando lá fomos para pescar e caçar jacarés. Turene era o Superintendente Regional do IBAMA e nos acolheu e direcionou na compra dos tipos de anzóis, iscas e apetrechos que deveríamos usar e mais recentemente em um churrasco em casa de parentes naquela localidade, ocasião em que passamos longas horas matando as saudades dessa terra enquanto saboreamos a boa pinga que havia levado.
Assim era esse grande amigo que se foi de forma prematura e que certamente onde estiver estará contagiando todos com sua espontaneidade, com suas histórias hilárias e com sua risada sonora e expressiva, além de utilizando essa qualidade que lhe era inerente e única – a de atribuir apelidos jocosos a quem dele se aproximasse, os quais, mesmo que sem qualquer conexão com nada acabavam “pegando”, talvez por sua insistência em repeti-los à exaustão.
Descansa em paz e que outros tantos o acolham em sua caminhada. Em breve nos veremos e beberemos da boa pinga que levarei. Um abraço saudoso do amigo
Nicolau (como era por ele chamado)