EU E MEU PAI

(ao meu pai doente)

Uma infinidade de portas sugeria os dias passados, mas o letreiro insistia: "não entre". Aquele corredor gelado era o que separava nós dois. Setas luminosas indicavam o caminho. De repente, eu e meu pai. Era como se cada encontro fosse o último. Mesmo com todos os esforços para se manter firme, já dava sinais de extenuação. Olhei demoradamente tentando reconhecê-lo. Estava física e mentalmente debilitado. Não haveria de ser a mesma pessoa... - Que contava histórias para eu dormir. A sua voz não retumbava o timbre de antigamente. O silêncio era soberano.

Onde foi parar aquele homem que tinha a força de Hércules? Braços que tantas vezes carregaram-me no colo; e, que, fechavam-se em abraços. Quantas noites não ficou acordado velando o sono aflito do menino doente... E para quê? Eu nunca o agradecia pela manhã.

Não há nada que mensure a relação de pai e filho. É quem sabe um vínculo Santo. E quanto mais corremos para dentro dessa verdade, mais nos afastamos dela. Quando do processo de iniciação, fomos "treinados" para não voltar; desprender, voar. Salte! Você está livre! Ledo engano. Nunca conseguiremos alcançar os sonhos. Alimentamo-nos de esperança; e, isso só prolonga o nosso sofrimento. Amar? ah, isso é outra coisa...

Temos que nos entender com a autorialidade da vida. E nem aceitando a nós mesmos compreenderemos tais esforços. Não conseguia enxergar em meu pai nenhuma culpa ou remorso. Em tudo, o dever do pai. Se algo dele me fez mal, não estava mais presente.

Eu queria ser amável. Porém, isso só provaria o quanto ainda sou egoísta. Não compreendi a sua dor. Meu pai nunca fora feliz. Viveu na companhia de seus fantasmas. E sofre e ama na mesma proporção em que sonha o sonho que também é meu. Acorro a Augusto da tristeza, poeta do Eu-lirico, homem da eternidade e minha referência maior.

Para onde fores, Pai, para onde fores,

Irei também, trilhando as mesmas ruas...

Tu, para amenizar as dores tuas,

Eu, para amenizar as minhas dores!

Que coisa triste! O campo tão sem flores,

E eu tão sem crença e as árvores tão nuas

E tu, gemendo, e o horror de nossas duas

Mágoas crescendo e se fazendo horrores!

Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,

Indiferente aos mil tormentos teus

De assim magoar-te sem pesar havia?!

- Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim

É bom, é justo, e sendo justo, Deus,

Deus não havia de magoar-te assim!

(...)

Foi o que disse o vate, com as vozes dos anjos, ao seu pai doente... - Eram do poeta: as linhas, as letras, os versos; apenas, meus, os sentimentos em um acordo atemporal, visceral, nada mais. Uma vida inteira bem ali, desperdiçada, para que eu continuasse o meu caminho. E eu só fazia chorar.

*meu pai faleceu na madrugada de 17 de julho de 2017, poucas horas depois que esta crônica foi publicada.

Misael Nobrega
Enviado por Misael Nobrega em 16/07/2017
Reeditado em 15/03/2021
Código do texto: T6056177
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