Meu Amigo Marcelo Motta
Imagine que um dia você conclui que não quer mais viver na cidade onde sempre viveu. Quer uma mudança radical. Você teria a coragem de mudar? De largar o que tem e arriscar tudo? Eu conheço uma história de alguém que teve.
Conheci o Motta no segundo ano do colegial. Ele estudava na mesma classe que eu e morava perto, encontrávamos na escola e no ônibus. Surgiu uma amizade enorme, não apenas com ele, mas entre as nossas famílias, especialmente ele, o irmão dele, Mauro, e os pais, “seu” Maurício e e Dona Marylu.
Durante muitos anos, ele foi meu amigo mais próximo. Todo fim de semana encontrávamos, tínhamos duas turmas de meninas que andavam conosco, as meninas do Mackenzie e as secretárias. Saíamos sempre com uma delas, para barzinhos, jogar boliche ou só bater papo na casa de alguém. Motta estava comigo quando conheci a minha primeira namorada da vida adulta, foi padrinho de casamento de minha irmã. Esteve sempre comigo e Lena, desde quando a conheci, também foi nosso padrinho de casamento, no qual “seu” Maurício foi o juiz de paz. Motta era tão próximo de nós naqueles tempos que até ia no supermercado conosco, alguém da família, um verdadeiro irmão.
Enquanto eu iniciava na carreira profissional e na vida de casado, Motta começou a sua e já não nos víamos tanto. Teve um dia que resolvemos tomar um chope para por o papo em dia. Ele tinha acabado um namoro e estava bem desanimado com o trabalho. Mais do que isso, queria ser independente, não morar mais com a família. Dizia que seu sonho era sair de São Paulo, ir para bem longe, para Miracema do Tocantins.
Pensei bem no que ele falou e perguntei “O que te impede? Você está formado, solteiro, não está feliz com seu trabalho, por que não vai tentar seu sonho? Se não for o que quer, volta”. Eu não sei há quanto tempo ele pensava nisso e quanto esse papo o influenciou. Sempre achei que tinha contribuído para a decisão e muitas vezes quis saber se fiz algo bom ao incentivá-lo a ir.
O que sei é que algumas semanas depois, ele disse que ia passar uns tempos lá, iria conhecer. Quase não acreditei, porém ele falava muito sério e foi. Não conhecia ninguém lá antes, só que em uma semana já tinha um monte de conhecidos, sempre teve facilidade em falar com os outros. Não lembro o que ele fez para se sustentar no início, morou um bom tempo numa pensão, algo comum lá, uma terra de desbravadores, de gente querendo uma nova história.
No início, vinha a cada 3-4 meses para cá. Sentia falta da família e dos amigos. Eu sempre perguntava se ele queria voltar, ele sempre dizia que não. Ele realmente gostava de sua nova independência, de estar fazendo o que sonhava.
Com o tempo, prestou concurso e entrou na Defensoria Pública, trabalhando em Miracema, Miranorte, Tocantinópolis e Palmas e coordenou o Procon. Nesse trabalho no Procon, conheceu o amor de sua vida, a Katia. Depois, foi Procurador do Estado Passaram os anos, casaram-se e moravam no centro de Palmas.
Era pouco isolado para ele, vivia falando que queria morar numa chácara. Tanto fez que acabaram mudando para lá. Como não tiveram filhos, adotaram uma menina, a Joana, outra grande paixão de sua vida.
Esta história tem uma parte triste. Motta contraiu uma doença terrível, a esclerose lateral amiotrófica, ELA. Essa doença tira gradualmente os movimentos da pessoa e, na maioria dos casos, causa a morte em alguns anos. Ele enfrentou a doença com muita garra. Trabalhou enquanto pode até conseguir se aposentar por invalidez. Eu nessa época vivia uma vida de viagens, meus filhos eram pequenos, e tinha muito pouco tempo, falávamos por telefone nos aniversários, que ele jamais esquecia. Eu sempre perguntava se pretendia voltar, ele nunca pensou nisso.
Com o tempo, Motta não conseguia mais falar, eu precisava da Katia para saber como estava. Eu saí do meu emprego que me deixava sem tempo, os meninos cresceram e fui vê-lo no Tocantins em duas vezes. Na primeira, consegui me comunicar bem com ele, havia um quadro de letras, ele piscava e indicava as letras e eu adivinhava o que queria dizer. Ele sempre dizia que era doente, não demente. Por dentro, sua cabeça era livre e ele não deixava de viver por suas limitações. Curtia seus prazeres de receber visitas, da companhia de Katia e Joana e de quem o visitava, sempre tinha gente indo lá. Estava alegre e bem, adaptado à sua situação. Ele fez planos e reformou toda sua casa para facilitar o tratamento e a fisioterapia.
Passaram alguns anos, virei concurseiro, só estudava e me afastei novamente por isso. Um dia recebi um email lindo, com o texto de Santo Agostinho "A Morte não é Nada", cheio de fotos de seus amigos e família, de suas recordações, como se tivesse partido, falei com Katia e ela disse que ele estava vivo e bem e que ela mandou o email para todos amigos por que ele pediu.
Decidi que precisava ir vê-lo. Achei que ele estivesse cansado de tanta luta, que fosse um tipo de despedida. Nessa segunda vez que fui lá, a doença tinha limitado bem mais seus movimentos, ele se cansava fácil, era mais difícil falar com ele. Conversando, eu percebi que estava totalmente errado. Eu perguntei de novo se ele continuava querendo ficar lá. E ele disse que não, que queria mudar de novo, para um lugar mais isolado, uma pequena vila chamada Peixe, a 290 km de Palmas. Ele continuava com sonhos e determinado a realizar. Quis entender porque tinha mandado o email, levei tempo para conseguir captar. Ele queria que pensássemos nele pelos momentos bons que viveu conosco e não por sua partida, quando ocorresse.
Há muitas formas de ver essa história, e muitos terão uma visão triste. Eu não. Vou lembrar sempre do Motta como uma pessoa que viveu bem os 50 e poucos anos que teve de vida. Enfrentou adversidades e superou, não deixou de viver, apesar de limitações que derrubariam muitos. Sempre, em todos os momentos, sorria. Construiu uma família e uma história linda. Não se limitou pelo lugar que nasceu e pela vida para qual caminhava, foi como na música Travessia, de Milton Nascimento: "Já não sonho, hoje faço, com meu braço meu viver".
Hoje é seu aniversário. Ele não está mais conosco fisicamente. No entanto, sua lembrança permanece forte na memória dos que tiveram o privilégio de conviver com ele. Com um pouco de sorte, essa história de sonhos realizados passa por essa crônica para mais algumas pessoas e motiva a buscarem seus sonhos. Parabéns, amigo e irmão!