Tempo da Onça

O que sei da Onça de Pitangui, de um século atrás, é coisa comezinha, do dia a dia do vilarejo mas que, sem gracejo, chega a ser sobejo. Veio quase tudo pela boca de Ticintina, que lá viveu com seus pais e irmandade, de mais ou menos 1905 a 1924.

Ticintina, a primogênita da prole Velusiano-Inhana chegou a iniciar sua alfabetização no grupo Zico Barbosa mas não foi além do primeiro ano letivo. Aprendeu a assinar o nome e pegou tanto piolho na cabeça que a mãe lha raspou - e cobriu com um lenço branco.

No mais, tudo aprendeu por observar e palrear. E até fez uma curta incursão na língua de Shakespeare quando pageou, junto com a mana Isabel, os filhos do major inglês que lá foi o responsável-mor pela mineiração do ouro - atividade em que seu irmãos por parte de pai, Chico e Zé, andaram metidos por algum tempo. Da pajeação dos petizes Marcus e Thomas, Ticintina evocava e replicava os cuidados sequiosos da mãe dos moleques, uma bondosa Dona Margarida, que falava atrapaiado, ao tentar barrar-lhes alguma arte: Nortibóia, nortibóia (no original era naughty boy, mas o que vale é a palavra de Ticintina.

Ela era a única das meninas da vizinhança de Marcelina Dão, uma solitária senhora, que era autorizada a brincar com a coleção de botões e miuçaia que a velha guardava zelosamente numa bacia. Sem contar a pedra na barriga, de que se lamuriava, e só à menina Cintina é que a confidenciava.

Ticintina, sem ruborizar, nos contava dos artifícios do pai, seleiro de serventia, mas sem muito serviço, ao incumbi-la de pedir um pedaço de sebo no açougue para engraxar as linhas de coser sela..."sebo esse que ia era pra panela..."

Contava de aventuras infantis fascinantes como botar um prato d´água na soleira da janela, em noites de geada braba e, ao acordar, deparar com aquele bloco de gelo, cuja chupação era uma diversão indescritível.

Da jacuba, mistura de açúcar com farinha e água, ela só não chegou a ser consumidora voraz por ter que compartilhar com quem vinha atrás: Zabel, Rita, Ção, Tõe, Lia e papai.

Três de suas irmanzinhas não passaram da fase de bebê e Constância sobreviveu até o quatro, quando sem resistir ao balanço da rede, caiu no embalo do Criador.

Tudo o que ela contava tinha peso e leveza de verdadeiro, verossímil, desde a gia ao lado do pote de laranja-da-terra na bica do padre Fernando, até o fantasma que a perseguira num quintal onde, subrepticiamente, se refestelava em jabuticabas...

Falava com familiaridade e afeto num Tavinho, menino da terra que saira dali para estudar no Pará e viria se tornar um douto Capanema...E, mais fantástico ainda, falava em ter visto com as irmãs aquele clarão iluminando o breu, quando a matriz de Pitangui - a duas léguas de distância - foi destruída pelo fogo, em 1914.

Sua descrição do cenário da febre espanhola, que chegou ao povoado em 1918 ou 1919 era minuciosa - e apocalíptica.

E, para contar a merencória história, escapou - inglória, ou em glória?

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 25/11/2016
Reeditado em 20/04/2022
Código do texto: T5834696
Classificação de conteúdo: seguro