HOMENAGEM A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - MINEIRO POETA.

O novo homem

Carlos Drummond de Andrade

100 anos: 1902-2002

Nada escapou ao olhar detalhista de Drummond em suas crônicas. Custo de vida? Tem. Escola de samba, carnaval e futebol? Tem. Viagem à lua, briga de vizinho, guerra, paz, brotinho de miniblusa e velhinho de bengala? Tudo isso também tem. Praticamente, não há tema do dia-a-dia que não tenha freqüentado as crônicas do poeta.

Aqui, ele trabalha com o tema do bebê de proveta, o ser humano feito em laboratório. A crônica em versos "O Novo Homem" foi publicada no Jornal do Brasil em 17/12/1967 — portanto, 35 anos atrás. A genética nem estava tão avançada assim e Drummond já discutia e ironizava a idéia do ser humano "fabricado", com bebês à la carte, escolhidos num catálogo.

Centenário do poeta:

31 de outubro de 2002

O homem será feito

em laboratório.

Será tão perfeito

como no antigório.

Rirá como gente,

beberá cerveja

deliciadamente.

Caçará narceja

e bicho do mato.

Jogará no bicho,

tirará retrato

com o maior capricho.

Usará bermuda

e gola roulée.

Queimará arruda

indo ao canjerê,

e do não-objeto

fará escultura.

Será neoconcreto

se houver censura.

Ganhará dinheiro

e muitos diplomas,

fino cavalheiro

em noventa idiomas.

Chegará a Marte

em seu cavalinho

de ir a toda parte

mesmo sem caminho.

O homem será feito

em laboratório,

muito mais perfeito

do que no antigório.

Dispensa-se amor,

ternura ou desejo.

Seja como flor

(até num bocejo)

salta da retorta

um senhor garoto.

Vai abrindo a porta

com riso maroto:

"Nove meses, eu?

Nem nove minutos."

Quem já conheceu

melhores produtos?

A dor não preside

sua gestação.

Seu nascer elide

o sonho e a aflição.

Nascerá bonito?

Corpo bem talhado?

Claro: não é mito,

é planificado.

Nele, tudo exato,

medido, bem-posto:

o justo formato,

o standard do rosto.

Duzentos modelos,

todos atraentes.

(Escolher, ao vê-los,

nossos descendentes.)

Quer um sábio? Peça.

Ministro? Encomende.

Uma ficha impressa

a todos atende.

Perdão: acabou-se

a época dos pais.

Quem comia doce

já não come mais.

Não chame de filho

este ser diverso

que pisa o ladrilho

de outro universo.

Sua independência

é total: sem marca

de família, vence

a lei do patriarca.

Liberto da herança

de sangue ou de afeto,

desconhece a aliança

de avô com seu neto.

Pai: macromolécula;

mãe: tubo de ensaio

e, per omnia secula,

livre, papagaio,

sem memória e sexo,

feliz, por que não?

pois rompeu o nexo

da velha Criação,

eis que o homem feito

em laboratório

sem qualquer defeito

como no antigório,

acabou com o Homem.

Bem feito.

Drummond: 100 anos

Carlos Machado, 2002

Carlos Drummond de Andrade

In Caminhos de João Brandão

(publicado originalmente no JB, 17/12/1967)

José Olympio, 1970

© Graña Drummond

http://www.algumapoesia.com.br/drummond/drummond17.htm

http://www.algumapoesia.com.br/drummond/drummond17.htm
Enviado por J B Pereira em 19/10/2016
Código do texto: T5797041
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