Coisa indecente

Já setentão, o folheiro Vicen Chave caminhava inexoravelmente para extinção, de mãos dadas com a sua profissão. E resistia o quando podia ao batido da lata, socado no porão do casarão colonial em decadência que ocupava com a mulher Ana e a filha solteira remanescente Janice.

O acesso à sua oficina, onde volta e meia tentava passar seus conhecimentos a algum jovem aprendiz, fazia-se por um portão lateral quase permanentemente fechado sob as ordens rigorosas de dona Ana

que repudiava intimidades.

Mas ao Vicen sobrava o ar da rua, sobretudo de nosso beco que era adjacente à sua São José, e onde morava, vizinha à nós, tia Rita, solteirona, que parecia suspirar às visitas furtivas e quase silentes de Vicente. Cupido era então revivido, após décadas adormecido, mas nunca caído no olvido. O que não contribuía, por mais que se insistia, era o ouvido vicentino, em progressivo desatino. Mas se Beethoven, a quem até os anjos ouvem na surdez suas mais belas sinfonias fez...

Ana, que já se vingava preemptivamente não devolvendo as bolas que em nossas peladas caíssem porventura em seu quintal, só se deu mesmo por satisfeita, quando duma feita, mano Nacho, ainda um pivete, aparecera ao portão do Vicente levando um urinol para ver se podia ser soldado num pontinho onde lhe fugira o esmaltado.

Ah, pra quê: mal chamou na surdina, do alto da janela sentenciou Ana Karenina e ferina:

- Sai pra lá com essa coisa indecente, isso não é digno de Vicente!

Se a memória não me falha, Nacho mijou na palha.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 11/10/2016
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