Gilbeque Becô, as origens de um zagueiro viril

As primeiras lembranças desta amizade são do jardim de infância da D. Liliza, instalado na casa de seu pai, o saudoso Antônio dos Santos. Isso foi por volta de 1956. Dos janelões da sala de aula daquela casa colonial, a gente via o perfumado córrego do Baiacu serpenteando pela última vez, antes de ser engolido pelo capeamento, até reaparecer na Cava, lugar onde o trem fazia a curva. Havia momentos que o cheiro incomodava. Ainda incomoda até hoje. Prefeito vai, prefeito vem, e um enorme trecho do córrego continua sem tratamento. Mas isso é uma outra história

Naquele tempo, ainda não era o Becô, Gilberto de Oliveira Santos, era o Gilberto do Zé Ingrês, como se dizia. Aprovados, passamos às Classes Anexas do Ginásio, sendo alunos, do 1º ao 4º ano, da D. Maria Bicalho Viegas. Entre os colegas, me lembro mais do Fábio Campos, Humberto Cançado Henriques, Marco Antônio Saldanha e Edson de Freitas Aguiar. Mas o mais chegado mesmo era o Gilberto. Nossos pais eram amigos e incentivavam aquela amizade dos filhos. Tive muitas anotações na caderneta – e ele também – por correrias e outras travessuras no pátio interno ou no galpão da escola, fosse no Primário ou no Ginasial. Uma vez, brincando de pega-pega, numa subida de escada, tentando escapar do Gilberto, levanto a cabeça e quem vejo: Messias Calu, como o chamávamos, o inspetor de alunos, nosso terror, no alto da escada, só esperando pra dizer o famoso e imperativo:

- Secretaria! Agora! Os dois.

Aí não tinha refresco. Era pegar a caderneta, devidamente, anotada, ir pra casa mais cedo e ter de explicar aos pais o motivo de mais uma anotação: retirou-se por indisciplina. Certo ano foram tantas que cometi um dos primeiros pecadilhos de minha vida: assinei no lugar de minha mãe. Falsidade ideológica, mas eu devia ter uns 10, 11 anos, menoridade penal. De qualquer maneira, hoje já estaria prescrito o crime. D. Terezinha, minha mãe, soube disso alguns anos depois, sem muita recriminação. Eu já devia ter feito coisas piores depois daquilo!

Não me lembro se fizemos o Admissão ao Ginásio juntos, que também foi sob a orientação da D. Liliza. Era uma espécie de vestibular para entrar no Ginásio. O certo é que nos encontramos na primeira série e fomos até a quarta juntos. Entramos com 10 anos e pouco, ele nascido em fevereiro e eu em maio, e enfrentamos uma turma terrível. A maioria era de homens barbados, todos velhíssimos para nós: tinham 14 ou 15 anos, e se aproveitavam pra fazer bullying, como chamam hoje, nos pirralhos de 10 e 11 anos. Roubar merenda, obrigar-nos a trazer merenda para eles e algumas outras sacanagens, umas feitas em dupla, como esta: um distraía, inventando uma história, outro se agachava atrás do distraído e o da frente dava um empurrão. O tombo era terrível, porque inesperado. Geralmente as vítimas eram os calouros, pobres pirralhos. Mas ninguém morreu por isso.

A turma mais velha era Zé Catrepa (José Maria Teixeira), Bené (José Benedito Rodrigues Pereira) , Paulinho do Velho da Taipa (dele só lembro o apelido), Tonho Capão (Antônio Eustáquio Vasconcelos), José Alberto Abreu Corgosinho, Adalberto do Papagaio, uns capetas que não davam sossego a ninguém. Quando foi chegando o fim do ano de 1964, a maioria já estava se preparando para mudar pra Belo Horizonte, para continuar os estudos. Só eu que não. Eu tinha medo de ir pra BH, só tinha apenas 14 anos e uma paixão secreta em Pitangui. Daí, planejei minha bomba com uns três meses de antecedência, em completo segredo. Escolhi 3 matérias. Era assim o regulamento: se você tomasse bomba só em duas matérias ainda dava pra sonhar com segunda época. Com três já era. Além do mais, não conseguia me imaginar no Estadual em BH, já matriculado no Científico, opção Engenharia. Daí, desiludi meu pai com aquela bomba direta inesperada – Matemática, Latim e uma outra de que não me lembro. Gilberto seguiu a trilha normal e eu fiquei pra trás.

No ano seguinte, já sabendo que não ia mais pra BH, me tranquilizei e completei meu Ginasial e acabei fazendo o segundo grau mesmo em Pitangui, na então Escola de Comércio Maria Dolabela. Como repetente da então quarta série, conheci o Embaixador Paulo Miranda, então apenas o Pavão do Luiz Velu, e iniciamos uma amizade que perdura até hoje, com algumas idas e vindas, com capítulos em Copenhague e Brasília. Foi dessa época também que conheci Reinaldo Pereira de Souza, o Reinaldo Rohr, e começamos também uma amizade iniciada por causa da música dos Beatles e que transformou nossas vidas, porque passamos a compor música juntos, e seguimos nessa estrada até hoje. Mas esses dois amigos merecem capítulos à parte.

Vamos agora ao que interessa, o início do Gilbeque Becô. Nossos pais eram amigos, Zé Tinoco e Dininho, como disse antes, e minha mãe gostava muito da D. Nívia. Daí, de tanto ligar pra casa do Becô pra combinar alguma coisa, quase sempre futebol, jogo de botões ou ver Tarde Esportiva Goodyear na tv da casa dele, com jogos do campeonato carioca, decorei o número e lembro até hoje – 657. O da minha casa era 646. A propósito, saibam os mais jovens, a comunicação por telefone naquela época era assim mesmo: a gente levantava o fone, a telefonista dizia – telefonista – e a gente dizia o número. Não dava pra não decorar.

Quando crianças, ainda no primário, jogávamos bola na então Travessa Cel Diogo Vasconcelos, recém aberta, que ligava a Av. Lima Guimarães com a Major Bahia. Não tinha tempo ruim para aquelas crianças. A rua nem era calçada, tinha capim por todo lado, mas sem problema, jogávamos de manhã, com qualquer tempo, porque tínhamos aula à tarde. No tempo do frio, jogávamos descalços com uma bola de plástico grosso e caroquento que, molhada de orvalho e naquele frio, queimava nossos pés e as pernas. Mesmo quando não havia mais companheiros, não deixávamos de jogar, jogávamos gol a gol.

Porém, o melhor de tudo, era o jogo na casa dele, na R. Major Bahia. Um gol no portão da rua, do lado de dentro, e outro na garagem, a uns 50 metros de distância, ao lado do barracão de costura. Um campo de futebol muito mais comprido do que largo. Ao lado da garagem, ficava o vaso com o eterno imbé, folhagem que a D. Nívia prezava muito e era razão de muita briga com o Becô, perdão, Gilberto. Nesse – estádio – conheci Hamílton e Derlúcio do Geraldo Preto, que também jogavam com a gente. Com eles também, comecei uma amizade.

Um dia, eu já devia ter meus 10 anos, chamei o Gilberto para ir treinar no infantil do Zé Emídio, no CAP. Zé Emídio era casado com uma prima em primeiro grau de minha mãe, então eu já rolava minha bolinha no campo do CAP. Mas aí já era outro estágio – chuteira, meia, calção, individual e coletivo, estratégias, triangulações etc. Ele topou. No entanto, não sei se não dei as coordenadas corretas, só que, imaginem vocês, ele foi treinar de galocha. De galocha! Verdade. Não sei se ele se lembra, ou talvez não queira admitir, mas eu me lembro. Se admitir, explicará por que. A brilhante carreira de um beque começou dessa maneira, difícil de acreditar.

Aí começava a carreira do futuro Gilbeque Becô, da qual posso dizer que sou padrinho, rssss. Em dupla com Zé Queirós, Edson do Nestor, Adriano e outros, Gilbeque Becô fez seu nome como o terror dos atacantes do Oeste de Minas. Zagueiro vigoroso, pra não gastar outros adjetivos, marcou época, sim, mas também muitas canelas alheias. Isso quando jogava leve, porque teve época e circunstância que batia da cintura pra cima, como contam. E ele não desmente. Pelo contrário, aumenta, rsss. Recentemente, contou no watzapp, que, num jogo em Pompéu, contra o CAP de lá, o pai de um jogador local passou o tempo todo amolando uma faca no alambrado, prometendo furar o Queirós e ele depois do jogo. À toa não era, né?

Bem, aí está a minha versão da história dessa amizade. Por certo, ele terá a sua. Uma amizade que, se foi interrompida em questão do convívio, por causa dos caminhos da vida, foi reatada uma e outra vez, em encontros casuais ou em peladas comemorativas. Entretanto, nunca se interrompeu na minha lembrança. Agora, com o grupo Pitangui Sempre Amigo, ele já com o apelido consolidado de Gilberto Becô, por causa do cantor francês que cantava Au Revoir, voltamos a nos falar, nos escrever e acompanhar o dia a dia de cada um, pelo menos de maneira virtual. E, falando em lembrança, não me recordo de ter tido qualquer briga com ele, nenhum desacordo sério em nenhuma época dessa convivência. Acho que nossa amizade continua basicamente a mesma, mudaram apenas os parâmetros, afinal envelhecemos. Mas ele, para mim, continua o jovial e enérgico Gilberto do Zé Ingrês, da Rua Major Bahia, companheiro dos primeiros contatos com o futebol, a primeira amizade de verdade de minha vida, que sempre preservei.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 17/06/2016
Reeditado em 17/06/2016
Código do texto: T5669971
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