Linguajar e língua achar

Ticintina era tia Vicentina Justiniana Miranda, em nossa forma afetiva e abreviada. Desde menina, Ticintina resolveu abolir o Justiniana de seu nome, por horroroso que lhe soava. Cintina só já lhe bastava.

Nasceu e se criou na Onça de Pitangui até seus 19 anos, quando em 1924, mudou-se com os pais e irmãos para o vizinho povoado do Brumado de Pitangui, onde havia perspectiva de trabalho na fábrica de tecidos lá instalada. E a irmandade toda foi-se empregando à medida que a idade chegava. Até a irmanzinha caçula Maria, a Lia, tanto se empolgou com aquela novidade em que os irmãos mais velhos andavam metidos - e bote metidez aí - que, aos sete, sete sim, tanto rogou que pra fábrica também entrou.

Consigo, os Mirandas trouxeram da Onça, que também foi chamada Jaguaruna (onça preta, em tupi-guarani) o linguajar regionalizado do qual Ticintina muito nos passou na tenra e terna infância e que, embora não registrado de forma sistemática, volta e meia retorna em flashes de memória.

Já pensei até em compilar um ensaio sobre palavras e expressões incenses e brumadenses que se vão perdendo nas brumas do tempo - e da falta dele. E esse pensamento me acompanha há décadas. Materializar-se-á algum dia? Pelo andar a charrua tudo indica que não. A vida mais que corrida, anda quase transcorrida e, se não se crê na volta - afora a do Messias - ela é só de ida. Mas vale, fale, ser vivida.

Ticintina frequentou somente o primeiro ano escolar, e o grupo Zico Barbosa, ainda que em frangalhos hoje, tá lá na Onça de Pitangui para o testemunhar. A falta de incentivos a continuar nos estudos era acachapante: trabalhos domésticos, auxílio nos cuidados com irmãos que iam nascendo, e vai ver até que a falta duma merendeira para lhe saciar a fome...Mas uma coisa que terá contribuído para o seu afastamento tão prematuro, podia bem ter sido a falta da aptidão para os compêndios, as letras, os conceitos, e mais ainda a abundância de piolhos na escola que importou na raspagem de suas melenas e no uso forçado daquele pano na cabeça, para as caçoadas da turma.

Décadas mais tarde, enquanto nos pageava para a garantia da alternância de turnos entre papai e mamãe na fábrica, ela, também operária foi a nossa mais doce mestra. Contava, cantava e instruía na sua forma mais natural. Catre, cancela, serrar os ói, aluir, assungar,

espiar só, por sentido...que inesgotável manancial. E falava até nos meninos ingleses que pageara na Onça, juntamente com sua mana Isabel, a Tibebé, e no inglês que aprendera ao ver a mãe reprimir os peraltas: naughty boys...que falava com seu sotaque oncense: nortibóia. Que jóia.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 16/05/2016
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