E A Vida Continua
Depois da Missa de 7º dia, em intenção da alma de meu Irmão Laerte, comecei a recordar nossas vidas, juntos. Desde a nossa primeira escola, o 5º Grupo Escolar, na Rua 24 de Maio, na Vila Industrial, onde eu já estava indo para o 3º ano, e o Laerte seria calouro, no 1º ano. Isto em 1944.
Como eu já conhecia os alunos da escola, fui até o Digão, garoto com fama de malvado, e lhe disse: “Aquele menino ali é o Laerte, meu irmão”. E lhe adverti: “Se você tirar alguma coisa dele, eu te arrebento a cabeça”. E mostrei a ele o meu estilingue e várias bolinhas de aço.
“Numa distância de até uns 20 metros eu te acerto a cabeça e nem a Santa Casa irá conseguir te consertar”. Depois disso nunca tivemos problemas. Nem com o Digão, nem com qualquer outro menino metido a valente. Mas o meu estilingue nunca saiu da minha bolsa.
Eu mesmo, muito antes de tirar o diploma, já ia trabalhar de graça: primeiro com um sapateiro, depois com um alfaiate, e depois com um barbeiro. Sempre como aprendiz. Em 1946, eu com 12 anos, fui trabalhar num bar da Rua 13 de Maio, em tempo integral. Era um emprego remunerado. O 1º da minha vida. Dali há algum tempo, o Laerte foi ser aprendiz de barbeiro, ofício muito bom.
Mas nós, por começar muito cedo a trabalhar, tivemos pouco tempo para desfrutar como criança. Mas nós nunca brigamos. Combinávamos em tudo; juntávamos figurinhas de futebol juntos, para os jogos de bolinha de gude, tínhamos uma gaveta cheia delas em casa, nas quadras de botões, nossos times eram os melhores, e nossa área de casa no no 960, da Rua Carlos de Campos, era de ladrilho xadrez, bem nivelado. Era o nosso campo para o jogo de botões. Batíamos nos times de todos os meninos das imediações. E ali passamos muitas horas felizes. E também pintando caminhõezinhos na casa do Sr. Gumercindo, um marceneiro que fazia brinquedos para o Natal. E os caminhões que eu e o Laerte pintávamos eram os primeiros a serem vendidos, graças ao capricho das nossas pinturas.
Quando deixei o meu emprego no bar, para trabalhar na Fábrica de Cola, isto em 1949, o Laerte já estava muito adiantado no ofício de barbeiro, já fazendo algumas barbas. O seu oficial era o senhor Domingos Cicone. Era uma época que na Vila Industrial havia sete ou oito salões de barbeiro, muito bem frequentados. Em pouco tempo o Laerte se tornou um dos melhores barbeiros da Vila Industrial. Nessa época nós formamos uma ótima dupla de jogadores de bochas. Éramos quase imbatíveis. Nossa equipe de bochas era comandada pelo senhor Brasilino Butinholi. Nossa base eram os 2 campos do Bar Floresta, na Vila Industrial. Então varremos todos os campos de Campinas e das cidades das imediações de Campinas.
A dupla Laércio e Laerte era o ponto alto da equipe. Tinham irmãos jogadores de bochas que não combinavam de jeito nenhum. Mas eu e o Laerte sempre jogamos bem e juntos.
Mas ai essa fase de nossas vidas ficou mais difícil. Eu entrei na carreira de Locomotivas, na Cia Mogiana de Estradas de Ferro e o meu tempo ficou muito reduzido para uma folga a cada 9 dias. Ai nossa parceria de bochas ficou interrompida. Minhas viagens como foguista, a Ribeirão Preto, Casa Branca, ou Guaxupé, tomavam todo o meu tempo. Mas continuamos a nos querer bem.
Em 1959 eu me casei com a minha querida Lucy. Tudo eram felicidades. Mas eu sofri um acidente na ferrovia, com muitas queimaduras em todo o corpo, e mais uma vez o Laerte, com muito amor, passava muitas vezes no quarto da Clínica Pierro onde também estava internado o meu companheiro de viagem, o Senhor João Gardinali. Ele era maquinista e estava, também, muito queimado. Ai o Laerte cuidava de nós a noite inteira, sempre oferecendo sua boa vontade e nos dando esperanças de logo poder sair do hospital, o que aconteceu depois de três meses. Voltei a trabalhar na linha como foguista, não sem antes ficar mais três meses em casa. E o Laerte nunca deixou de nos visitar, sempre cortando o meu cabelo. O Laerte ia, também, na casa do João Gardinali, meu companheiro de acidente. Sempre oferecendo seu amor humano.
Passou o tempo e eu me aposentei como maquinista de 1ª Classe Especial, e o Laerte sempre atendendo a todos no seu salão de barbeiro, com sua freguesia aumentando cada vez mais, graças à sua competência, e tratando a todos com muito respeito, independente da cor, credo, ou da posição social. Enfim, ele era querido por todos.
Um belo dia eu lhe disse: “Laerte, por que você não para?”, isso quando ele estava se tratando de um problema num pé. Então ele se virou e me disse: “Eu não paro por que a minha vida foi aqui. O trabalho não é pesado e entre um corte e outro eu sento para ler os jornais do dia. E se parasse eu não ficaria feliz. Moro aqui perto e estou sempre dando um pulinho na minha casa”. E pondo a mão no meu ombro me disse: “ Laércio, eu sei que se pudesse voltar no tempo, você estaria começando na Mogiana outra vez. Fica no sangue da gente..”. e eu lhe respondi:” É, é a pura verdade”.
Então, o Laerte foi atender a um chamado de Deus, e nos deixou uma lacuna impossível de ser preenchida.
E a Rua Dr. Carlos de Campos, onde nós nascemos nunca mais será a mesma, sem você meu irmão.
E parecido ao que diz aquela música do Sérgio Bittencourt:
...Naquela Rua tá faltando ele, e a saudade dele está doendo em mim....