Minha Mãe
Dizem que a expressão Mãe Coruja designa uma mãe muito zelosa, preocupada com os seus filhos e que os protege em todas as situações. Então posso dizer que a minha mãe tinha um “instinto matercorujal”
Mãe de oito filhos, não tirava os olhos de nenhum. Cuidadosa, dedicada, crítica e muitas vezes, exagerada, ela era capaz de brigar com quem falasse mal dos seus. Quando se irritava, dizia que os filhos eram desmazelados, preguiçosos..., mas ai de quem falasse mal de um dos seus filhos. Sempre atenciosa e preocupada, era capaz de ler pensamentos e se antecipar aos fatos. Não permitia que os filhos brigassem e não admitia que um irmão não falasse com o outro. Discreta, nunca reclamava com os filhos na frente de visitas ou vizinhos. Quando queria chamar atenção, ela piscava os olhos e isso significava: “cala a boca, não estou gostando disso, fica quieto, você está errado”. Mãe zelosa, mesmo com a maioria dos filhos crescidos, ela acordava cedo, pois parecia não admitir ver seus filhos saírem de casa sem que ela estivesse acordada. Digo isso porque dormíamos juntas e em alguns momentos via como ela pulava da cama quando percebia que alguém já estava acordado. Depois que todos saiam, ela ia tirar seu cochilo no sofá da sala. Assim também era a chegada.
Ela não dormia enquanto os filhos não chegavam. Quantas vezes dormi com os seus resmungos: um estalar de boca e um falar baixinho: “ cadê fulano que até agora não chegou? Ela só dormia sossegada quando todos chegavam. Ela sofria com a dor dos filhos. Algumas vezes, vi minha mãe velando um filho que estava doente na cama. Ela olhava para o filho como que pedisse a Deus que transportasse toda dor e sofrimento para ela. Quando um dos seus filhos falecera, o mundo parecia não fazer mais sentido para ela. Via, sempre quase no final de tarde, minha mãe debruçada no muro da frente de casa como se esperasse o filho chegar. Eu ficava escondida no beco da casa, olhando o sofrimento dela e num desses dias, vi a perna de minha mãe esvaindo em sangue (ela bateu a perna em algo e estourou uma veia, mas nem percebeu). A dor da perda e lembrança do filho era tamanha que ela não sentia o sangue escoar pela perna. Então eu gritei e ela olhou para a perna e foi lentamente lavar-se para estancar o sangue. Um dia ouvi minha mãe sussurrando que se Deus existisse que não tirasse mais nenhum filho dela, mas que a levasse com ele.
Minha mãe também era boa em matemática e gostava de estudar. Vivia fazendo conta e seu vocabulário era cheio de expressões idiomáticas. Quisera ela, saber que me influenciou a escrever sobre variações linguísticas. Dona Judith é homenageada na minha dissertação de mestrado.
Pois bem, essa era dona Judith, minha mãe. Que amava muitos os filhos e cuidava dos netos com muito zelo. Que comprava frutas e verduras todo sábado; que pedia para alguém pentear o seu liso cabelo, só para ela cochilar. Que gostava de mamão, laranja e kibe e que tinha alergia a beterraba e abacaxi. Que fazia escalda pés para meu pai e cozinhava sopa todos os dias, exceto no domingo. Que fazia cozido nos sábados e cozinhava o feijão de domingo, no sábado à noite e dizia sempre, referindo-se a melhor parte das refeições: deixa isso aí que é para Joãozinho; Vê se deixa o de Joãozinho.
Essa era Dona Judith, que xingava quando alguém batia o portão e dava banana com as duas mãos. Essa era D. Judith, minha mãe, que sofreu muito com a filha caçula que na infância tinha sérios problemas de saúde e que perdeu um pouco de si quando viu o seu filho Zé, falecer.
Como disse, ela acordava cedo, pois não admitia ver um filho sair sem que ela estivesse presente. Em uma manhã de sábado, 30 de janeiro de 1993, ela acordou cedo, foi comprar pão, voltou. Fez café e se despediu de uma filha, que saíra para trabalhar. Em seguida ela voltou para tirar o seu sagrado soninho no sofá. Esse foi o seu último cochilo.
Encontrei minha mãe morta, deitada no sofá como quem dormia. Sua morte foi exatamente como ela queria.
Verônica Almeida, 16 de dezembro de 2015.