Uma carga de rapadura

Embora papai seja dono de bela grafia, mamãe é que mais escreve com a sua garrancharia. Cartas, cartões, doces, dóceis, por vezes com alguns puxões, a escrita dela poreja reflexões, de uma operária libertária sempre presa entre seus algodões.

Bem escassa, pelo menos pra praça, é a produção de papai. A rigor lembro-me, em fragmentos de duas manifestações suas, ao pé-da-letra:

a mais antiga, sobre um cartaz branco, que ornou por algum tempo a parede do salão de orações do Brumado nos meados dos anos cinquenta, durante alguma campanha pastoral, continha um desenho razoável de uma mão estendida e o dístico, em maiúsculas: Quem dá aos pobres empresta a Deus. Eu ficava orgulhoso de ver aquele cartaz ombrear-se com outros similares, só abaixo das sacras ilustrações da via-sacra.

Numa segunda vez, meu paternal literatez apareceu alguns anos depois, já em Pitangui, como parte de uma composição catártica e coletiva que se fazia por ocasião da queima do Judas, nos sábados da Aleluia, enquanto o Senhor morto aguardava sua triunfal ressurreição.

Não sei se incentivassem, mas a verdade é que os padres daquela época toleravam bem a prática desse ato de vingança para com aquele que beijara o Cristo. Verdade é que o público, jubiloso, acorria em peso

a manifestação.

E, no chamado Testamento do Judas, pelo menos por uma vez, papai contribuiu com uma quadrinha que, sem atacar direto o discípulo convertido em traidor, tocava em personagens da cidade de maior relevo, ou enlevo.

Da quadrinha que papai fez, guardo apenas os dois últimos versos, que dizem mais ou menos assim, ao se referirem a um excêntrico vendeiro da cidade, Levy de nome e de Tisnado apelidado, que se comprazia

em atender sua humilde freguesia, sem contudo, causar choque onde ia amontoado seu estoque. E como as rapaduras jaziam em bloco sobre o balcão, a doçura era o maior centro de atenção. E vamos aos dois versinhos finais, como se o próprio Judas os tivesse inspirado e ditado:

...e ao grande amigo Tisnado

...deixo uma carga de rapadura...

Nunca cheguei a provar delas. Formavam um bloco compactado e, separá-las me soava amargo pecado...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 01/12/2015
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