CENTENÁRIO DE JOSÉ DE FELIX

A questão fundamental que se coloca quando nos encontramos frente a frente com a figura de José de Felix – o Zé Feliz – é se estamos diante de um homem sensato ou de um louco. Da nossa resposta dependerá todo o relacionamento que, a partir de então, teremos com esta figura centenária.

Certamente Zé Feliz dará sua resposta ao longo de duas partes de sua vida gloriosa, a primeira até os 60 anos de sua vida e a segunda prosseguiu até estes 100 anos e mais anos que advirão. Entre uma e outra, ele continua correndo pelo mundo afora à procura de atingir o “impossível chão”.

Logo na primeira fase de sua vida todos nós sabemos o que aconteceu com esta carismática figura que rematado já de todo juízo, deu no mais estranho pensamento em que nunca jamais caiu louco algum do mundo, e foi: parecer-lhe conveniente e necessário, assim para aumento de sua honra própria, o casamento com Augusta, a dulcíssima esposa que se prestou ao “que der e vier”, reinou em seu viver até morrer, como para proveito da república, fazer-se pai, corajoso pai de NOVE filhos com toda aquela trama que o destino lhe obsequiara, músico, alfaiate, pouca renda, muita coragem, digno de honra e louvor, fez-se cavaleiro andante, à feição quixotesca, e ir-se por todo mundo, com suas armas – a cara e a coragem – à cata de aventuras, desfazendo todo o gênero de agravos, e pondo-se em ocasiões e perigos, donde, levando-os a cabo, firmou os filhos no mundo e, por tudo isto, cobrasse perpétuo nome e fama.

Daí, e do que já conhecemos de Zé Feliz, sem sequer dar-se ao trabalho de aprofundar-se em sua vida pregressa, podemos concluir que possivelmente se trata de um louco, manso, mas louco – o louco de Deus. Vamos procurar esta conclusão com algo mais de vagar. Há muitas formas de encarar a vida e a realidade. Há aqueles que encaram a vida e não veem nada além do que seus olhos podem alcançar. Homens como os descritos por Dickens em Tempos Difíceis, que não querem decorar a casa com um papel de parede com desenhos floridos pura e simplesmente porque nunca ninguém viu flores nas paredes. Nada mais lógico: as flores encontram-se no campo ou nos vasos, nunca num papel de parede.

Homens assim estão feitos para serem práticos, pragmáticos. Sua vida se resume numa única pergunta: isso serve para quê? Talvez o melhor representante deste tipo de pessoa seja aquele tipo que procura “deixar de bobagens” e ter em conta a idade que tem e não cair no ridículo de andar por aí “endireitando a vida de todos”.

Para esse tipo de pessoa, Zé Feliz só pode ser um louco. Aliás, todos nós sabemos e Zé Feliz inclusive, que há duas formas de entender e duas formas de olhar para o mundo. Há uma forma chã – terra a terra – e há uma outra forma, a forma daqueles que estão possuídos por um projeto.

Independente de todos os conceitos, o homem centenário dança durinho, anima o corpo e anima a vida. Salve José!

Após “uma parte” na dança da vida, a dama exclama:

- Seu José, parabéns! O senhor dança muito bem. Ainda está durinho!

A que José Feliz respondeu em tom simplório:

- Durinho da cintura prá cima!

Para melhor entender o glorioso José de Felix basta conferir a sua vida com a augusta amada esposa Augusta. Como era uma esposa prática e via em seu esposo atitudes que não passavam de bobagens, nem se preocupava em corrigi-lo. A iniciativa de educar os filhos, partira dela, a sua Dulcinéia que, ao contrário da Dulcinéia de D. Quixote, esta não era fruto de uma loucura, ela era verdadeira, era Augusta que atuava...

-Discreta senhora. A sua paciência me enobreceu – exclama José de Felix – desde a primeira filha, Socorro, depois vieram os outros: Celia, Léo, Josélia, Tito, Gloria, José Carlos, Goretti e Lamartine e tudo isso devia ser para poder escrever uma história, poder lê-la depois mais devagar e saboreá-la melhor.

Muitos não entendiam esta livre atitude deslavada do feliz José, só podia estar tão cego e dão um sinal contundente. A vida é dura, o dinheiro é pouco e a miséria cheira mal. Pior, tem cheiro de pobre, e pobre fede a suor...

- Não é bem assim. Deve ser que vocês cheiram mal, a maldade e a maldição do medo apossou-se em vocês e tudo isto fede, porque bem sei eu como cheira Augusta, aquela rosa entre espinhos, aquele lírio do campo, aquele âmbar precioso – berrava José aos quatro ventos deste mundo perverso.

Mesmo assim, os trevosos insistiam que a sua amada não lhe dera sequer uma joia de lembrança; que o presente único oferecido era cuscuz com leite e carne de charque no almoço. José de Felix não se deixa embair por palavras de efeito, ele sempre soube ver a grandeza’ ... e que grandeza!.

- Generosa Augusta, ela foi em extremo. E se não me deu uma joia de ouro, é sem dúvida porque não a tinha à mão... deu-me algo mais precioso, deu-me estes filhos que me são os guardiões de minha velhice!

Quem está louco? Quem tem razão José de Felix ou a plebe ignara? Não se pode esquecer que este Feliz Vivente foi um homem com um projeto a realizar, enquanto os outros não tinham projeto algum a oferecer ao pobre José. E só o homem com projetos é que consegue captar que a realidade é sempre muito maior do que se vê. Depende do sentido que a vida tiver. E só o homem com projetos é capaz de descobrir e atualizar o sentido e significado da vida.

“Escrever é, do começo ao fim, reproduzir a vida ao meu redor através do meu interior, o qual o absorve tudo, o combina tudo, o recria de novo, o amassa e o reproduz em formas e matérias próprias. A criação não é criar e descobrir do nada, mas infundir o entusiasmo do espírito na matéria” (Thomas Mann)

Antes de tudo, vamos nos ater à semântica da palavra entusiasmo. José Feliz, é, até hoje, um entusiasmado pela vida que leva. Ele é amante de festa, festeiro que é; festivamente ele está contagiando o mundo que o cerca, festejando a vida, liderando uma corrente de festa onde a solidariedade dos filhos torna mais brilhante este jubileu de amor! (Levítico, 25) seguindo-os, os netos e bisnetos cantam, choram, gritam seguindo o critério da emoção do momento; depois os genros e noras; engrossando esta procissão repleta de raridades, estamos nós, contagiados, “entoando hinos de louvor”. Salve este nobre e entusiasta José que nos entusiasma a todos nós!

ENTUSIASMO é uma admiração, um arrebatamento, uma explosão de alegria, uma excitação de maneira exagerada.

Com relação à etimologia, a palavra entusiasmo se deriva do grego “enthousiasmos” que significa “ter um deus interior” ou “estar possuído por Deus”

Matei a charada: TODOS nós estamos possuídos por Deus porque o José de Amor também o está!

Esta frase acima, o texto de Mann diz tudo: trata-se de infundir entusiasmo em toda a realidade. A realidade não é um bloco monolítico, isolado, à margem da minha vida ou de quem está seguindo o meu roteiro de livre pensar sobre este raríssimo evento. Pelo contrário, a realidade está à espera de que nos relacionemos com ela. E essa relação é que é a vida ou, pelo menos, a trama de nossas vidas . É falso afirmar que “vejo o que vejo”, como diziam os trevosos a respeito da vida que José de Felix levava, pensando afirmarem a verdade mais óbvia do mundo. “Todos temos as mesmas sensações, mas percebemos de acordo com nossos conhecimentos, planos e intenções”

É engano seu, é engano meu, é engano nosso se pensamos que olhamos para a realidade como se fôssemos um espelho; como se, de certa forma, nossos sentidos e nossa inteligência se comportassem como uma máquina fotográfica, que refletiria a realidade: vejo o que vejo.

Heisenberg dizia: “Não deveríamos esquecer que o que observamos não é a própria natureza, mas a natureza determinada pelo teor das nossas questões”.

A realidade é posta em cheque, é submetida a intervenções; é analisada, entrevistada, recortada por nós e, desta forma, é que é transformada em vida nossa. A minha vida real é a vida que sou capaz de viver dentro da realidade assim trabalhada. E, nesse sentido, José de Felix não é louco, é apenas um homem apaixonado, um homem disposto a viver a vida com um projeto.

Por isso, quando depois de viver em Bezerros toda a missão permeada de desafios para educar os filhos, vão Augusta e José, os filhos também, vão à procura de um lugar de repouso, Vitória de Santo Antão onde “as suas coisas iam encaminhando de bem a melhor", ainda não tinham andado uma pequena légua, quando lhes deparou o caminho e nele descobriram uma venda que, apesar seu, e a contento de José de Felix, devia ser um castelo. Os filhos diziam que era uma venda e José que não, porém castelo...

O nosso herói não está louco, simplesmente passou a ser visto como louco um visionário por todos aqueles que, sensata e racionalmente, acham que a vida é para apenas ser vivida. José de Felix pertence à categoria de homens que não aceitam à facticidade do acontecer humano. Há uma irrealidade, extremamente poderosa, que não é ficcional ou fantástica. É a irrealidade do projeto, do sonho, da utopia, que envolve e entusiasma o homem, extraindo dele o máximo de si e carregando-o de felicidade. É por isso que José de Felix vê o famoso time do Santa Cruz um futuro campeão do Brasil e do mundo, enquanto os arautos da desgraça consideram esta cobra coral dominada pelo Leão do Esporte. Que maldade! Neste campo, ele se transporta e vira vendeiro...

Como no caminho lhe começou a chover, receoso de que lhe estragasse o chapéu, que naturalmente seria novo, pôs-lhe por cima a bacia, que, por estar areada de pouco tempo, resplandecia a meia légua de distância. Vinha montado em seu asno pardo, se figurando a seu ver um cavalo ruço rodado; ele o cavaleiro e a bacia seu elmo de ouro, sendo o campo de batalha a máquina de costura postada numa alfaiataria no centro da cidade. José, você me emociona!

O projeto é algo pensado, escolhido, deliberado, “ao qual entrego o controle da minha conduta. É preciso essa característica projetiva – dirão futuriça – que amplia e enriquece o campo de ação do homem e lhe permite sair dos estreitos limites do mundo racional e formal. Passa-se a viver criativamente”. “O enamorado de um ideal é muito mais normal do que todos aqueles que não são capazes de compreendê-lo. O projeto ao colocar-se como meta a ser realizada, consegue ampliar o campo de liberdade do homem. A partir desse momento a sua vida dá-se além da estatística e da lógica. A lógica formal, o método matemático são tentativas de apreender a realidade, mas a realidade é muito mais do que o método compreensivo e vai muito mais além do que um simples modelo explicativo. Pode acontecer que o homem, quando completamente entusiasmado pelo seu projeto, não saiba bem para onde está indo, como acontecia com Dom Quixote. Pode até não resolver muitos problemas que irão surgindo na sua frente, como também acontecia com D. Quixote, mas é sem dúvida alguma a melhor maneira de viver criativamente. Tudo o que hoje é permanente na história foi, nos seus começos, puro quixotismo”. O nosso herói, quando se depara com um problema difícil de resolver, ele nem esquenta a cabeça, José de Felix tem uma escudeira forte e fiel: a amada filha Josélia! Que homem de sorte é este José!

É evidente que esta forma de viver está em rota de colisão com o padrão racionalizado, funcional e tecnologizado da sociedade contemporânea, mais preocupada com os “meios” do que com os “fins”. A técnica tem em si a sua própria razão de ser: não importa o para quê; não se discute se os meios tecnológicos serão bem ou mal realizados. A eficácia é o único critério de verificação. Pode-se criticar o bondoso José de não preocupar-se se os seus esforços davam ou não davam resultados. E, de fato, nunca se preocupou da eficácia das suas ações. Também não era esse o padrão comportamental do cavaleiro da Mancha. A sua eficácia consistia na sua entrega entusiasmada ao seu projeto. Num mundo dominado pela razão técnica, o homem é obrigado a pautar-se pela eficácia e pela produção. Tudo o mais é sonho, utopia inútil.

Quando José Feliz realiza qualquer aventura está olhando para a própria tarefa a ser realizada. Lembro-me de um acontecimento, em Goiânia, em casa do neto Rômulo, imperceptível, rotineiro na vida deste herói sonhador, que me deixou uma lição de paciência e bom humor: mal o dia tinha amanhecido, José Feliz acorda e se dirige ao banheiro, a escudeira Josélia lhe diz que o banheiro estava ocupado. O Feliz José, senta-se na beirada da cama, começa a cantar baixinho em um solilóquio musical, esperando a porta abrir e ele executar o asseio matinal. Esta sua atitude assume uma dimensão imanente, ou seja, sabe que a perfeição da ação não está propriamente na eficácia do agir, mas na qualidade da própria ação. O homem aperfeiçoa-se no ato, através do agir, eis o porquê dos 100 anos deste anjo José: ele sabe agir sem esboçar qualquer reação boa ou má. Ele deixa fluir o seu viver em paz... . Esse é o ensinamento da tradição clássica grega: o agir segue o ser. Por isso, enquanto José de Felix liberta os agrilhoados por qualquer vicissitude na vida, através de seu exemplo livre e liberto, vai dizendo ao mesmo tempo: “se bem vos castigaram por vossas culpas, as penas que ides padecer nem por isso vos dão muito gosto, e que ides para elas muito a vosso pesar e contra a vontade, e que bem poderia ser que o pouco ânimo daquele nos tratos, a falta de dinheiro neste, os poucos padrinhos daqueloutro, e finalmente que o juízo torto do magistrado fossem causa de vossa perdição, e de se vos não ter feito a justiça que vos era devida. Tudo isto se me representa agora no ânimo, de maneira que me está dizendo, persuadindo e até forçando, que mostre em favor de vós outros o para que o céu me arrojou ao mundo, e me fez nele professar a ordem de cavalaria que professo, e o voto que nela fiz de favorecer os necessitados, e aos oprimidos pelos maiores que eles”.

José Feliz agia e age conforme ao seu projeto, mesmo que durante a sua viagem pela vida situações lhe causaram certo sofrimento. Um deles testemunhei quando era ainda criança, a rua Vidal de Negreiros entrou em polvorosa: a filha Goretti, com cerca de dois anos de idade foi vítima de grave queimadura. Augusta estava preparando cuscuz com leite quando, de repente, a leiteira virou sobre o frágil corpinho de sua pequena Goretti. Foi um desespero só! José de Felix, totalmente transtornado, levava a criança nos braços, a pequerrucha coberta com uma alvíssima manta. José de Felix parou em frente à venda de meu pai e uma pequena multidão se formou para ver a criança. Bio da Farmácia medicou a criança com Nebacetin e outros medicamentos para queimadura haja vista não ter sido muito grave o acidente como pensávamos. Durante o dia foi uma romaria em casa do casal Augusta e José de Felix e todos tinham uma receita caseira para queimadura.

Lépida e fagueira, Goretti cresceu, tornou-se mulher, mãe de um filho – Filipe – que se tornou uma espécie de Sancho Pança deste nosso herói José Feliz. Inseparável na companhia do querido avô, Filipe, silencioso e cordato, acompanhava este nosso personagem ao estádio do Arruda para torcer pela Santa Cruz na “alegria e na tristeza”, mais tristeza que alegria, mesmo assim, também, eu continuo torcendo pelo Santa Cruz.

No ano passado, estivemos presentes ao enlace matrimonial de Filipe com a bela e querida Patrícia que assumiu o sobrenome Alcântara como prova de amor ao filho de Goretti.

Na noite do enlace matrimonial entre Filipe e Patrícia, fazia um frio danado lá pras bandas de Minas, Araguari, os convidados se acomodando esperando a chegada da noiva. Filipe, como sói a um casamento que se preza, entra no recinto da igreja acompanhado da mãe Goretti. O que aconteceu com ela, a Goretti? A gentil senhora estava belíssima, deram-lhe um retoque de primeira e a mesma apresentava ares de nobreza. Quando Goretti sentou-se ao lado de José de Felix este perguntou:

- Quem sois tu?

- Sou sua filha Goretti, papai! Não tá me conhecendo? – respondeu Goretti.

- Oxe! Sois tu é?

José de Felix age conforme sua utopia: realizar a justiça e ganhar a fama; quanto ao resto... fama ganhou, justiça se fez, por isso é que agora ele se chama JOSÉ FELIZ! ...”... que cada um se veja com seu pecado; há Deus nos céus, que não descura de castigar o mau e premiar o bom”. A utopia cria um espaço entre as possibilidades e a realidade. E dentro deste espaço é que o homem age e se realiza. Está sendo EXATAMENTE o que se passa na vida deste ilustre centenário! A sua utopia o transformou em guardião dos pórticos do templo da vida e da sabedoria. A sabedoria de Cabedá – como alguns o tratam com este nome – reside justamente na simplicidade que o caracteriza nesta sua rica vida terrena. José Feliz começou a ver diferente a vida a partir da utopia e do projeto que o entusiasmaram e também, de alguma forma bem pessoal, a realidade deixou de ser utopia e as possibilidades, dentro de seu projeto de vida, se realizaram e serão coroados nesta régia festa deste centenário abençoado. Como todos nós sabemos, as coisas não se apresentam da mesma forma para um espectador, para um lavrador ou para um compositor e a forma das coisas apresentadas na vida deste herói foram árduas e repletas de desafios mas a família Alcântara é madeira de lei, “Veia” – como era conhecida a Matrona da família, Dona Zefinha, as cunhadas de José Feliz e muito amor forjaram a verdadeira filosofia do “amai-vos uns aos outros”. O projeto altera o significado das coisas: as coisas mais singelas e insignificantes podem passar a ter um enorme significado ou, então, podem continuar carecendo dele. Era isto que acontecia com esta família que muito admiro. Para a sogra e os cunhados, o que realizava José Feliz carecia de sentido e, justamente por isso, vão a seu socorro e conseguem enobrecer esta família de José Feliz. Movido por este amor tão profundo e tão digno, surge na vida do nosso herói uma outra forma de olhar para os mesmos fatos, um olhar com poucos projetos porque os grandes ele delegara aos filhos mais velhos...

- “Ah tempo cruel que passa, deixando marcas, – pensava este nobre Feliz em determinadas horas - repare vossa mercê que tudo isso que dizem a respeito dos viventes é fábula e mentira, e as suas histórias, a não serem queimadas ou esquecidas, mereciam que lhes pusessem a cada uma um sambenito, isto é: uma vestimenta de condenados a viver, ou algum outro sinal, para que fosse conhecida por infame e destruidora dos bons costumes cada uma destas mentiras. Tudo porque nada é perfeito nesta vida que levo, e as vidas que levam vocês!... Valha-me Deus! Você que passa e que me escuta saiba Vossa Mercê tanto, que, se fosse mister, podia numa urgência subir ao púlpito da Igreja Matriz de São José dos Bezerros ou ir a pregar por essas ruas da cidade onde nasci, e com tudo isso cair numa insensatez tão óbvia, que dê a entender que fui valente, sendo o velho que agora sou, ainda tenho forças...será? estando cercado de enfermos, por muitas mortes eu passei, e que sei endireitar tortos, estando derreado pela idade, pela cidade que madrugo, eu anoiteço, e sobretudo ainda sou cavaleiro, braço firme e passo nobre, não o sendo, porque, ainda que o possam ser os ricos e abastados, nunca o são os pobres!”.

Quando José Feliz mudou-se de Bezerros indo morar em Vitória de Santo Antão, não carregava tristeza ou abandono, carregava certo “desencanto” talvez, do olhar da filha Célia ou do Filho Léo, quem sabe? Carregava também a maestria do CUSCUZ "made" mãos de Augusta. Dizem até que Jarbas quando retornava de Recife à Bezerros, estacionava o carro somente para comer o famoso e inesquecível cuscuz. Certa feita, vindo de férias, fiquei hospedado alguns dias em casa do casal José e Augusta. Os filhos ainda solteiros, fomos ao Gamela de Ouro comemorar uma noite inesquecível. Conservo algumas fotografias daquele evento. Pela madrugada, ao retornar da noitada, eis que descansava sobre o fogão um delicioso SARAPATEL. Quem resistiria? Confesso que comi quase toda aquela iguaria.

Por isso, em sua nova moradia, a vida daquela família sorri novamente e José Feliz voltou a ser o que era antes, voltou a pensar de maneira diferente e disse dirigindo-se à sua amada Augusta:

-“E tu, extremo de perfeição, último termo da gentileza humana, remédio único deste aflito coração que te adora. Já que um maligno nigromante pôs nuvens e cataratas nos meus olhos, e só para eles e não para os outros mudou e transformou o teu rosto formoso no de uma pobre mulher sofredora...”

Volta dessa maneira José Feliz a olhar para o mundo desde a sua utopia. E vão transcorrendo os capítulos de sua belíssima história, Augusta e Filipe, Josélia, Célia e Glória, Socorro e Tito, Léo e José Carlos, Goretti e Lamartine, todos eles e os netos, se uniram e compartilharam da utopia de JOSÉ FELIZ! A melhor fórmula encontrada para trazer o querido pai de volta foi todos os filhos transfigurarem-se de Cavaleiros e damas de Branca Lua e desafiá-lo em combate. Mesmo derrotado por causa da passagem da esposa querida, José Feliz nunca deixou de expressar sua devoção por Augusta...

“Minha querida professorinha Augusta, foste e ainda és a mais formosa mulher do mundo e eu o mais infeliz cavaleiro da terra, e não estaria certo que a minha fraqueza defraudasse esta verdade; aperta, cavaleiro, a tua lança e tira-me a vida, já que me tiraste a companhia de tão honrosa mulher”.

Era loucura? Parece mais um sonho descontrolado. O projeto a ser realizado, quando é bom, sempre coloca o homem além dos seus próprios limites. O homem entrega-se à tarefa sem ter tudo definido previamente, sem saber exaustivamente o que vai acontecer e, então, sem que estivesse previsto, consegue-se o fruto que nos ultrapassa.

Quando, um de seus filhos, José Carlos, maldosamente segreda que está morrendo, que está à beira da morte, José Feliz mostra-se completamente lúcido. Não tomara nenhum remédio. Está querendo que todos escutem suas palavras. Dá a impressão de estar respondendo a Maquiavel e a todos os renascentistas que tanto acreditaram no papel da deusa fortuna;

- Carlinho, tu vai morrer antes da festa dos meus cem anos? Oxe, tás doido, é? Vai estragar a minha festa é? Olha, o que posso dizer é que não existe fortuna no mundo, nem as coisas que sucedem, boas ou más, sucedem por acaso, mas sim por especial providência dos céus. A nossa fortuna é a vida”.

Qual foi o erro de José Feliz? Com certeza, a sua “lucidez” responderia: “Por isso costuma-se dizer que cada um é artífice da sua ventura, e eu o fui da minha, mas não com a prudência necessária. Atrevi-me, fiz o que pude, derribaram-me, e, ainda que perdi a honra, não perdi nem posso perder a virtude de cumprir a minha palavra”.

O sonho realiza-se além dos nossos sonhos.. Esta é a verdade pura, autêntica deste nosso herói centenário! É só nessa altura que conseguimos ousar, atrever-nos, correr o risco do fracasso. Mas é só assim que o homem tem a possibilidade de entusiasmar-se. O entusiasmo é exatamente o oposto do autocontrole e do autodomínio. Etimologicamente, significa estar no controle e nas mãos de Deus, estar fora de si, absorvido no que se está realizando. Mas isso não é a condição dos loucos e, sim, dos apaixonados.

“O que mais pode descobrir nos nossos próprios olhos quem somos de verdade, isto é, quem pretendemos ser, é o balanço insubordinável do nosso entusiasmo. Onde estão colocados nossos sonhos, e com que força? Que empresa ou trabalho preenche a nossa vida e nos faz sentir que, por um momento, somos nós próprios? Que presença orienta a nossa expectativa, que antecipação nos polariza, estando o arco do nosso projeto e se converte no arco involuntário e irremediável do mesmo?

Entre provação, ações, contradições e contorções, José Feliz nem sonhou sonhos impossíveis, a utopia no pensar revelou-se não somente possível de realizar como provável e, assim, ele atingiu o "impossível chão".

Carlos Lira

Obs. Consultei vários autores para compor este trabalho e acrescida com idéias e comentário de Francisco Assis Nóbrega, para homenagear este homem fenomenal, à sua família que agradecida, festeja desde o ano passado, o centenário deste vulto vivo de nossa história, de nossa história de vida pobre (rica) quando fomos moradores da rua Vidal de Negreiros, em Bezerros, onde as famílias de José de Felix, dona Tarcila e Lourival e meus pais, Manuel e Alaide, dona Maria de João Trajano, quando a filharada “brotava” do chão e florescia pela vida afora.

Confesso que em muitos dos trechos, me emocionei, em outros chorei como estou chorando agora, neste final de minha homenagem a este nosso JOSÉ FELIZ!

clira
Enviado por clira em 11/04/2015
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