Diário da minha infância...

Hoje abri os olhos, mas não quis me levantar.
Fiquei deitada, olhando o mensageiro dos ventos, balançando na minha janela.
Respirei fundo e deixei o cheiro de chuva invadir meu quarto.
E aquele cheiro... Ah... O cheiro...
Cheiro de balanço armado no pé de abacate.
Cheiro de riso gostoso quando o balanço ia bem alto e eu me sentia como uma borboleta, voando, voando...
Cheiro de bolo de milho quentinho esperando na mesa do café. E o café!!!! Nossa, que café! Café coado com coador de pano, nem muito grosso nem aguado. No ponto. Como só você sabia fazer.
Continuei respirando a chuva e ela me levou até um dia em um mercado, numa praça de uma cidadezinha.
Eu, me sentindo a rainha da Inglaterra porque estava no teu pescoço. E você, todo cheio de amor, porque estava me levando a um lugar que você adorava.
O cheiro da manhã me lembrou jasmim, me lembrou a casa da vizinha, cujo muro eu pulava para visitar o fantasma da D. Lulu. E você, todo cheio de cuidados para não me traumatizar, me contava que fantasmas não existiam. E eu ria, ria, porque o Fantasma da Dona Lulu tava rindo pra mim e dizia, “deixa pra lá...”
Hoje eu lembrei de você. Lembrei de quando estava sentada, sozinha, na escada de casa, depois de ter tirado nota baixa na prova de matemática (e olha que eu tinha me matado de estudar!).
Eu chorava, chorava. E você veio. Sentou ao meu lado, segurou minha mão e disse assim: sabe que dia é hoje?
Eu te perguntei se era feriado, ou dia de São-Sei-Lá-O-Que, já que você era tão fervoroso em suas crenças.
E você, balançou a cabeça e disse: Não, hoje não é dia de nenhum santo. Mas é um dia sagrado. EU o declarei assim. Hoje é o dia Internacional do Vamos Recomeçar.
Achei que você estivesse brincando, mas você me pegou pela mão e me levou até a sala. Abriu minha mochila, tirou meu livro de matemática e começou a estudar comigo. E nessa hora, eu até esqueci que você não sabia ler. Estudamos a tarde inteira e à noite, na hora de me dar um beijo de boa noite, você me disse que não existia nada melhor do que um dia após o outro – com uma bela noite de sono no meio...
Pois é, Vô, hoje eu lembrei do quanto você me ensinou.
Do quanto me ajudou a delinear a mulher que sou hoje.
Olha! Eu estou escrevendo, Vô! E maisssss!!! As pessoas estão me lendo!!!
Levantei da cama. Um longo dia me esperava.
Mas hoje, só hoje, eu queria te dizer:
obrigada por nunca ter desistido de mim. Eu te amo. Um beijo da sua Neta...